Justiça Tributária
A reforma tributária encerrou na Câmara: registrar para não esquecer
Todo tributarista que faz jus a esse nome conhece o trâmite do Código Tributário Nacional (CTN — Lei 5.172/66) no Congresso, quando as discussões ocorreram sobre um anteprojeto elaborado por uma comissão presidida por Luiz Simões Lopes e composta por Rubens Gomes de Sousa, Gilberto de Ulhôa Canto, Gerson Augusto da Silva, Sebastião Santana e Silva e Mario Henrique Simonsen. A ideia era regulamentar a novidade introduzida na Constituição de 1946 por Aliomar Baleeiro denominada de "normas gerais de Direito Financeiro" (artigo 5º, XV, "b"), sendo que um primeiro esboço havia sido elaborado por Rubens Gomes de Souza em 1953. Um excelente resumo dessa história pode ser lido nesta ConJur, elaborado por Gustavo Brigagão. Aquilo foi uma reforma tributária digna desse nome, com R maiúsculo.
Rememoro esse fato para que não esqueçamos a diferença entre o que foi feito e o que vem sendo realizado agora, sob o mesmo título, embora com diferenças abissais. Tal como venho fazendo, é importante registrar para não esquecer, pois nossa memória é curta (ver aqui e aqui). É importante que se saiba como, quando e quem são os responsáveis pelo aumento da bagunça tributária no país, afinal, no fundo do poço sempre pode haver um alçapão para afundarmos mais.
A reforma tributária que está em curso é um pacote tributário desarticulado, composto por duas PECs (45 e 110 — que visam a criar o IBS) e um PL (3887/20 — que visa à criação da CBS), para reformar o sistema de tributação sobre o consumo, e um PL (2337/21) que visa a reformar a tributação sobre a renda. Esse pacote encontra-se em debate no Congresso, em diferentes estágios de tramitação. Está ainda no horizonte do governo do presidente Bolsonaro a recriação da CPMF, visando a afastar a tributação sobre a folha de salários.
Semana passada a tramitação do pacote tributário sobre a renda (PL 2337) foi aprovado na Câmara por com 398 votos favoráveis e 77 votos contrários, e segue a caminho do Senado. Parte do que foi aprovado será exposto adiante em breves linhas.
Primeiro ponto. Foi recriada a tributação sobre os lucros distribuídos pelas empresas (os dividendos), com alíquota de 15%, algo que havia sido expurgado do nosso sistema em 1995. Em contrapartida, foi reduzida a tributação da renda sobre as pessoas jurídicas (IRPJ + CSLL).
Esse tópico aponta para dois aspectos: 1º) completa falta de detalhamento do impacto dessa modificação sobre a economia do país; o que se reflete em 2º) percepções díspares entre os agentes econômicos, uma vez que o setor privado repudiou de forma quase unânime a modificação proposta, bem como os estados, que são beneficiários de grande parte do imposto sobre a renda que aparentemente foi reduzido.
Segundo ponto. Será que a tributação sobre a renda foi reduzida? A alíquota do IR das Pessoas Jurídicas, que antes era de 15%, passará a ser de 8%, porém, a ela deve ser acrescida a CSLL, que é de 10% e se tornará de 8%. Logo, a carga tributária total sobre a renda que era de 25% passará a ser de 16%. Portanto, reduziu. Porém, como referido, essa redução é aparente, pois deve ser acrescido os 15% de tributação dos dividendos, tornando-a de 31%. Constata-se aumento de carga tributária.
O contra-argumento do governo Bolsonaro é que a conta acima está errada, pois soma a carga tributária sobre as empresas (IRPJ + CSLL) com a que incidirá sobre as pessoas físicas (IRPF sobre os dividendos). Ocorre que tal contra-argumento é apenas formal, levando a erro, afinal, é função das empresas gerar lucros para seus acionistas, ao lado de outras responsabilidades sociais, as quais, embora relevantíssimas, não possuem o condão de extinguir a necessidade de gerar lucros. Assim, é necessário acrescer à carga tributária sobre a renda das empresas, a carga tributária sobre os dividendos, gerando o aumento de tributação mencionado.
Por outro lado, a reclamação dos estados de perda de arrecadação aponta para outro lado sintomático e paradoxal em face da afirmação acima, pois, se haverá aumento de carga tributária sobre a renda, e se essa arrecadação é partilhada com os estados, por qual razão temem haver perda de receita? Pelo simples fato de que a arrecadação do IR sobre os dividendos será fortemente judicializada em concreto, uma vez que é de dificílima identificação o que é gasto pelas empresas em seu próprio proveito e o que é gasto em proveito exclusivo dos sócios e lançado como custo da pessoa jurídica — conhecido pela sigla DDL (distribuição disfarçada de lucros). Assim, o que teoricamente é uma majoração de carga tributária esconde uma intensa judicialização nos próximos anos, sem a certeza teórica da equação matemática.
Terceiro ponto, ainda sobre os dividendos. Não foi estabelecida uma distinção para esta nova tributação acerca dos dividendos acumulados de anos anteriores, que serão tributados quando e se forem distribuídos. Ou seja, a empresa que acumulou lucros de 2018, 2019 ou 2020 para eventual reinvestimento, seguramente está revisando seus planos, sob pressão dos sócios/acionistas, para distribuir esses valores antes que a regra seja aplicada. Isso gerará descapitalização das empresas em período particularmente complexo, em face da pandemia e das crises geradas pelo próprio governo Bolsonaro.
Quarto ponto, sobre os juros sobre o capital próprio (JCP). A extinção desse mecanismo financeiro igualmente levará as empresas à descapitalização, pois reduz a atratividade do capital de investimento dos sócios/acionistas. Trata-se de mecanismo inteligente, criado no Brasil, que a própria comunidade europeia pensa em adotar, e foi extinto pela Câmara dos Deputados, com apoio do governo Bolsonaro. Uma lástima.
Quinto ponto, sobre o desconto simplificado para as pessoas físicas. Hoje é limitado a R$ 16.754,34 e foi reduzido para R$ 10.563,60. Constata-se que também haverá aumento de carga tributária nesse ponto, além de redução da simplificação.
Sexto ponto. O que foi exposto no tópico acima anula o carro chefe das vantagens apresentadas no projeto de lei, sobre o alívio da tributação na fonte do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas para quem está na base da tabela e ganha entre R$ 1,9 mil (hoje isentos) e R$ 2,5 mil (que passarão a ser isentos) por mês. Segundo dados apurados por Everardo Maciel, essa diferença de tributação equivalerá a um ganho de R$ 7,50 mensais e é insuficiente para comprar um quilo de pão. Pior: considerando a mudança do desconto simplificado (quinto ponto), essa vantagem é simplesmente anulada.
Sétimo ponto, sobre a pejotização. O projeto aprovado cria alguns mecanismos que permitem as empresas escaparem desse aumento de carga tributária sobre a renda, todos focados em pequenas e microempresas, muitas delas optantes pelo Simples. Aparentemente isso é positivo, mas nos tornará um país de capitalismo nanico, pois ao invés de termos grandes e sustentáveis empresas, essas regras tributárias as estimularão a permanecerem pequenas, em face da alta carga tributária que ocorrerá se crescerem. O problema atual, que está sendo aprofundado, é como as empresas saem do Simples sem cair em um abismo tributário — ao invés de enfrentar esse ponto, a reforma o torna mais grave.
Oitavo ponto, aumentaram em 1,5% os royalties sobre o setor mineral, em especial o exportador (ferro, cobre, bauxita, ouro, manganês, caulim, níquel, nióbio e lítio), com uma bagunça fiscalizatória e na repartição dos recursos arrecadados.
Muito mais poderia ser dito, mas paro por aqui. Afinal, estamos no dia 6, segunda-feira imprensada entre o dia 5 de setembro, dia da Amazônia (que arde), e 7 de setembro, dia da Independência, que se pretende seja pleno de manifestações a favor do governo Bolsonaro, responsável pelas alterações na tributação acima expostas e que afetarão fortemente seu bolso — delicado órgão de qualquer ser humano.
É sempre necessário escrever para não esquecer — as eleições estão chegando.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
Fonte: ConJur