O que você acharia se um indiciado por alguma infração penal tivesse o poder de decidir os desdobramentos do inquérito policial em que ele fosse parte, inclusive o seu possível arquivamento? Parece surreal? Pois bem, guardadas as devidas proporções é o que acontece com as contestações em segunda instância administrativa dos litígios em matéria tributária e aduaneira que tramitam no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) da Fazenda Nacional.
É importante levar em consideração que o inquérito policial, por sua natureza jurídico-administrativa, não tem o condão de declarar o indiciado culpado, muito menos de condená-lo, apenas aponta indícios de autoria e materialidade. Sendo, portanto, incabível que um possível cometedor de um ilícito penal em apuração pudesse ter o poder de decidir os rumos do procedimento administrativo realizado pela polícia judiciária.
Já no contencioso administrativo federal, os autuados por possível cometimento de infração tributária não só podem, como decidem em segunda instância os desdobramentos das autuações lavradas pelos auditores fiscais quando da identificação de algum ilícito fiscal. Some-se a isso o fato de o julgamento administrativo fazer coisa julgada contra a administração, não contra o contribuinte. Este, caso não concorde com a decisão, poderá sempre recorrer ao Judiciário, enquanto ao fisco, em decisões administrativas desfavoráveis, cabe apenas permanecer inconformado, pois nada mais poderá ser feito.
Para termos ideia da dimensão do problema, o estoque dos processos no contencioso tributário federal no Carf era, em novembro de 2022, de cerca de 92 mil processos, perfazendo o valor aproximado de R$ 1 trilhão.
Os dados são astronômicos. Do estoque dos processos do Carf, 162 eram acima de R$ 1 bilhão, totalizando o montante de aproximadamente R$ 453 bilhões. Entre R$ 100 milhões e R$ 1 bilhão, o estoque era de 1.261 processos, perfazendo um total de aproximadamente R$ 341 bilhões; os processos entre R$ 15 milhões e R$ 100 milhões correspondiam a 4.604, perfazendo o total de aproximadamente R$ 167 bilhões; entre R$ 72 mil e R$ 15 milhões, havia mais de 53 mil processos, totalizando aproximadamente R$ 108 bilhões. Os processos abaixo de R$ 72 mil eram mais de 33 mil, cujos valores totalizados seriam de aproximadamente R$ 681 milhões.
Traduzindo os números: processos com valores superiores a R$ 1 bilhão, cujos valores atingem a cifra de aproximadamente R$ 453 bilhões, correspondem a 45,3% do montante dos créditos em contestação, sendo equivalente a apenas 0,17% dos processos em tramitação – ou seja, é nesse ínfimo percentual de processos que se concentram os maiores valores em litígio.
Caso levássemos em consideração os dados do ano passado – quando 1,9% dos processos resultou em empate no julgamento – e que, naquele momento, estava em vigor o artigo 28 da Lei 13.988/2020 – que tornou sem efeito o voto de qualidade e que previa, em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, a não aplicabilidade do voto de qualidade por representantes da Fazenda Pública, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte –, poderíamos afirmar que se não fosse a MP 1160/2023, que restabeleceu o voto de qualidade no Carf, todos os processos bilionários poderiam ser resolvidos em favor do contribuinte, com graves e irremediáveis prejuízos aos cofres públicos.
No discurso daqueles que advogam o fim do voto de qualidade, um dos principais argumentos é que a maioria das decisões do Carf são por unanimidade, e isso é um fato. Em 2022, 76% dos processos foram decididos dessa maneira. No entanto, 93,5% dos processos são de valores de até R$ 15 milhões e desses, aproximadamente 63% são de valores inferiores a R$ 72 mil.
Por outro lado, as decisões em que houve empate e resultaram em benefícios aos contribuintes, por disposição da lei que aboliu o voto de minerva, aconteceram em um percentual infinitamente superior ao do estoque de processos, com valores acima de R$ 1 bilhão.
Outra demanda amplamente divulgada pela mídia foi a proposta de representantes de parte da classe empresarial que pedem, em substituição do voto de qualidade do presidente do colegiado, que sejam excluídas as multas e os juros dos débitos tributários. Neste caso, quanto mais tempo o processo demorar para ser decido melhor seria, notadamente em decorrência do devedor do crédito poder utilizar o índice inflacionário em seu favor, reduzindo significativamente a importância devida.
Está na hora, ou melhor, já passamos do momento de rediscutir o papel dos tribunais administrativos tributários – não com os olhos daqueles que podem se beneficiar das decisões proferidas por esses órgãos, mas com os de um Estado republicano em que a res publica é propriedade do povo e não de um pequeno e privilegiado grupo.
FRANCELINO VALENÇA* – Doutorando em direito, auditor fiscal do Tesouro do Estado de Pernambuco e presidente da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco).