O ponto de partida é a década de 60. Época das revoluções, senão no sentido clássico, um tempo de rebeldia, revolta, contestação, transgressão, “um sinal premonitório da necessidade de reformas profundas” como definiu Daniel Cohn-Bendit, grande protagonista do Maio Francês de 1968.
De fato, sob acordes emocionantes, os Beatles foram incandescentes vagalumes que sacudiram e incendiaram o desejo de mudanças e a abertura de portas para um novo mundo.
Com a pílula, a revolução sexual deu impulso decisivo no longo percurso da luta pela afirmação histórica da mulher. Em todos os setores da vida social, pulsava o anseio por liberdade, autonomia, um estilo de vida desgarrado das estruturas sociais dominantes. Eram os ideais de “Paz e Amor”, dístico de uma contracultura que pregava: “seja razoável, peça o impossível”, “desobedeça antes de escrever nos muros” e “é proibido proibir” tropicalizado pela voz libertária de Caetano Veloso.
Nessa década, ocorreu uma onda de “desdemocratização”, com a instauração do regime militar de 64, aprofundado pelo AI-5 de 1968 , expressão cunhada pelo cientista social Samuel Huntington, contraposta às “ondas de democratização” em que definiu período de tendências em países que oscilam entre governos democráticos e autoritários.
Pois bem, o primeiro sistema tributário brasileiro é filho da centralização do poder ditatorial sob a marca de fortes aspirações transformadoras e libertárias no plano internacional.
Com a Emenda Constitucional 18\65, a Lei 5172\1966 e a Constituição de 1967, o conjunto das regras adotou o Sistema Tributário Nacional. Entre 61 e 64, a estagnação econômica e a inflação crescente intensificaram as tensões políticas (três presidentes e seis ministros da fazenda) o que culminou com o golpe militar de 64.
Por sua vez, o Programa de Ação Econômica do Governo – PAEG (1964/67) – propôs um novo sistema tributário que, além da função clássica de arrecadar, integrava o conjunto de reformas institucionais necessárias para a estabilidade política e crescimento sustentado.
A conjunção de fatores domésticos e internacionais levou o Brasil a ingressar na década de setenta com um ciclo de expansão econômica de tal ordem que recebeu o carimbo de “milagre brasileiro” (1968\1973).
Até então, a carga tributária oscilava entre 24 e 27% do PIB. Dois choques no preço do petróleo (1973, de três para doze dólares e 1979, para trinta dólares), promoveram tamanho desarranjo na economia brasileira que o país entrou na década de 80 com um elevado déficit no balanço de pagamento e índice de inflação de três dígitos.
No período de 1980 a 1994, as turbulências atingiram proporções dramáticas: 5 presidentes da República, 15 ministros da fazenda, 14 presidentes do Banco Central, seis planos de estabilização e um confisco, 6 moedas e 720% de inflação média anual. A década não foi de todo “perdida”: operou-se uma transição democrática com a promulgação da Constituição de 1988.
Passamos a viver numa democracia com moeda estável, o Real, a partir de 1994. Porém, os avanços na construção de uma nação justa dependeriam de amplas e profundas reformas institucionais.
Profissional da gestão fiscal, com experiência política, faz mais de quarenta anos que ouço a mesma cantilena o que me leva a concluir: a reforma tributária é o maior consenso no mundo abstrato da política e o maior dissenso no mundo real da economia.
O nosso sistema afastou-se de todos os princípios que dão sustentação à estrutura tributária: simplicidade, generalidade, neutralidade, equidade/progressividade.
Merecem registro algumas distorções: a extração regressiva da receita (paga mais quem ganha menos) 33% da riqueza nacional, o PIB, produzida pelo cidadão; a dimensão da judicialização no valor 427 bilhões de reais de processos no STJ, segundo a Lei de Diretrizes Orçamentária, chegando os litígios a valores extravagantes nas esferas administrativas e judiciais. Insegurança jurídica e incertezas econômicas, tudo que prejudica o ambiente de negócios e afugenta o investidor.
Na sequência dos Presidentes eleitos, a reforma tributária padeceu de fraqueza política. Os interesses corporativos são fortes: o interesse público, difuso e fraco.
Na situação atual, não há arcabouço fiscal sustentável sem uma reforma tributária. As PECs 45 e 110 resultaram de um amplo debate que enfrentou obstáculos históricos, entre eles, a guerra fiscal, o federalismo fiscal associado à questão do desenvolvimento regional e a simplificação da tributação sobre o consumo unificada num IVA.
A palavra final é do Congresso Nacional onde afloram os interesses legítimos de setores que podem sofrer perdas e o apetite lobista pronto para defender “o superlucro”, as desonerações injustificáveis, enraizadas com a força de privilégios.
O equilíbrio orçamentário é um compromisso convincente na perspectiva histórica do arcabouço fiscal desde que a salvo do voluntarismo desastrado.
Neste sentido, a viabilidade da reforma tributária depende da liderança do Presidente em construir um consenso político no quadro complexo de fragmentação partidária.
Vigente a partir de 2024, com pouso suave de 20 anos, como prometeu o Ministro Hadadd, o Presidente legará à História um novo marco institucional, definitivamente, em 2044, substituindo um sistema tributário (quase) centenário ao completar 78 primaveras.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda