Proposta de reforma tributária: a grande surpresa é que não há reforma
Por Elidie Palma BifanoO atual governo, como todos os que o antecederam após a Constituição Federal de 1988, comprometeu-se com a reforma tributária. Ninguém ousaria discordar da necessidade de serem feitas reformas importantes no sistema tributário brasileiro buscando aperfeiçoar institutos, revisitando os diversos tributos para adequar os critérios de cálculo e o âmbito de incidência aos novos negócios e tecnologias, bem como sistematizar a infinidade de normas menores que cada uma dessas exações carrega.
Cumprindo essas promessas, o Ministro da Economia acaba de apresentar ao Congresso Nacional proposta que tem por objetivo reformar o sistema tributário, especificamente no que diz respeito ao pagamento do Imposto sobre a Renda de pessoas jurídicas (IRPJ) e de pessoas físicas (IRPF), bem como à Contribuição social sobre o lucro líquido (CSL), devida por pessoas jurídicas. Diga-se que a divulgação dessa proposta era ansiosamente esperada por seus destinatários: no caso das pessoas jurídicas, por conta das dificuldades que vêm passando neste momento de crise econômica gerada pela pandemia de coronavírus e, no caso das pessoas físicas pela esperança de, reduzindo-se o tributo retido na fonte, cujas deduções e faixas de incidência estão sem atualização desde 2015[1], aumentar suas parcas disponibilidades. Esta é a segunda etapa cumprida no sentido de reformar o sistema tributário nacional, por parte do governo, sendo a primeira a proposta de criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), conforme Projeto de Lei nº 3.887/2020.[2]
No dia 25/06/2021, a Exposição de Motivos nº 00158/2021 acompanhou Projeto de Lei levado ao Congresso, onde ganhou identidade como PL n. 2337/2021. É importante destacar que a Exposição de Motivos, em seu primeiro parágrafo, enfatiza que esse projeto modifica a legislação do IR e da CSL, com o objetivo de modernizá-la, sendo que o IR é alterado tanto em relação à pessoa jurídica quanto à física. Esses dois tributos respondem por parcela substancial da arrecadação no país, assim afetando de forma importante o ambiente econômico nacional.
A simples leitura da Exposição de Motivos é decepcionante e já permite sustentar o título deste pequeno comentário: nada de novo pode o contribuinte dela esperar senão o aumento de tributos, a revogação infundada de práticas consolidadas, o desestímulo ao investimento, a criação de restrições à dedução de despesas sem maiores fundamentos. O Projeto deveria contemplar, pelo menos em honra ao nome reforma, que carrega, novas perspectivas tributárias, conteúdos e objetivos que integrem os avanços da tributação, fugindo ao convencional das anteriores tentativas de modificação que não lograram, até hoje, sucesso. De fato, a dita reforma tributária é apenas uma justificativa para, vestindo com novas roupagens, retomar diversos temas que não conseguiram, no passado, lograr êxito no Congresso Nacional, dado o equívoco da pretensão, inclusive a sua impossibilidade jurídica. Trata-se, pois, de uma ressurreição de propostas antigas costuradas e não de um projeto de reformas.
Além disso tentou-se, em uma canetada, eliminar a aplicação de institutos e a dedutibilidade de despesas, sem maiores argumentos ainda que de política fiscal, o que assusta os investidores que constroem seus modelos de negócios sustentados na garantia de continuidade do sistema jurídico, em longo prazo. São muitas as alterações introduzidas, mas neste pequeno estudo parece-nos que alguns desses temas devem ser comentados, desde já, por sua importância e para justificar nossas conclusões acima.
Examinando-se o proposto no PL 2.137, observa-se um ataque maciço às normas editadas na década de 1990 que permitiram ao país concretizar relevante plano de venda das participações societárias da União em importantes setores da economia, bem como atrair muitos investidores. Incluem-se nesse movimento, a revogação da dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio (JCP), da isenção na distribuição dos lucros e dividendos e da dedutibilidade antecipada do ágio pago na compra de investimentos, marcadas como uma simples desconstrução das regras inovadoras trazidas naquele período, sem qualquer maior justificativa. A elas, por ora, dedicaremos alguns comentários.
No que tange à revogação da dedução do JCP[3], alega-se que as empresas brasileiras preferem endividar-se no mercado do que junto ao sócio. Esse argumento não prospera, pois uma análise das demonstrações financeiras de empresas acreditadas em bolsa demonstra que muitas delas se valem desse instrumento para remunerar seus sócios, além de boa parte, capitalizá-los, assim mantendo os recursos na entidade. Do ponto de vista financeiro, o JCP tem custo igual ou inferior aos juros de mercado, além do que, ao longo do tempo, ter se tornado um dos elementos a determinar a preferência por investimentos no Brasil, sendo hoje adotado por outros países, inclusive da União Europeia, conhecido, em geral, como ACE (Allowance for Corporate Equity).
Verificada a fragilidade das razões expressas na proposta para revogar a dedutibilidade do JCP, indaga-se quais são os seus reais fundamentos? Não há qualquer elemento que reforce essa iniciativa, exceto eliminar a possibilidade de deduzir, na sociedade, despesa legítima a favor do sócio, restrição destituída de razoabilidade econômica, em desfavor do mercado. Diga-se que desde há muito vem sendo apresentados no Congresso Nacional projetos de lei com esse mesmo objetivo, sob os mais variados argumentos, até agora sem sucesso. Infere-se, portanto, que a reforma, sob este aspecto, apenas requenta projetos anteriores que não lograram êxito, evidenciando absoluta falta de criatividade associada a informação duvidosa acerca do uso do JCP pelas empresas.
A segunda proposição que ora se examina objetiva revogar a isenção dos dividendos e lucros distribuídos.[4] Nesse caso, o argumento de revogação é que o Brasil, ao alinhar-se aos preceitos da OCDE[5], deve acompanhar o que a maior parte dos países faz, ou seja, tributa os lucros ou dividendos distribuídos pela pessoa jurídica. Olvida-se a proposta de dizer que a distribuição entre sociedades, no mesmo país, não é tributada, cabendo tributar, apenas, o sócio, pessoa física. Afora isso, diversos países adotam a tributação conjunta das empresas de um mesmo conglomerado, reduzindo, substancialmente, dificuldades da tributação individual das entidades. A isenção na distribuição de lucros e dividendos foi criada considerando a integração sócio/sociedade, razão pela qual, à época, elevou-se a alíquota corporativa, em contrapartida da eliminação da tributação da pessoa do sócio. O Projeto propõe o caminho inverso: reduzir a alíquota do imposto corporativo para 12,5% em 2022, e 10% após, em contrapartida da tributação dos lucros e dividendos, na distribuição, à razão de 20%.
Para atingir os objetivos pretendidos é essencial que haja um cálculo minimamente confiável demonstrando que essa mudança não resulta, de fato, em aumento do encargo tributário para todos ou, pelo menos, para alguns, visto que a alíquota pretendida é igual para todas as empresas. Até o momento diversas entidades apresentaram cálculos mostrando um acréscimo exorbitante de tributo para o contribuinte enquanto o Governo se mostra silente. Estão em idêntica situação companhias abertas e fechadas, que têm propósitos diversos, sociedades de prestação de serviços e de produção de bens, além de as sociedades beneficiárias de lucros e dividendos terem que manter controle do imposto retido na distribuição para futuras compensações, crédito esse que pode perder substância enquanto não utilizado. A tributação de lucros e dividendos atrai a aplicação de uma série de situações há tempos alijadas do cenário tributário, como a distribuição disfarçada de lucros. Absoluto retrocesso, além de não ficar claro o prejuízo que o modelo atual acarreta para o país.
Outro benefício que se revoga é a chamada amortização antecipada do ágio pago na aquisição de investimentos em sociedades controladas e coligadas, nas aquisições de investimentos efetivadas a partir de janeiro de 2022. O uso desse benefício, criado para atrair investidores para o Brasil, também na década de 1990, [6] gerou um dos maiores contenciosos tributários dos últimos tempos, sempre resolvido em desfavor do contribuinte nos tribunais administrativos. Seu único objetivo sempre foi admitir a dedução dessa parcela de custo quando as sociedades investida e investidora se unissem, via incorporação ou cisão, ficando a dedução antecipada vinculada à sinergia manifestada pelo encontro dessas entidades, momento em haveria um influxo de caixa, pelo não pagamento de tributos decorrente da amortização do ágio, em benefício da atividade econômica.
Desde a introdução desse benefício, nunca as autoridades fiscais se manifestaram sobre que medidas os contribuintes deveriam tomar para bem cumprir essa norma, limitando-se, apenas, a autuar todos que dela se valessem, inclusive com multas agravadas. Hoje, simplesmente, tenta-se revogar o benefício e, com isso, restringe-se, certamente, o interesse de investidores pelo mercado brasileiro. A proposta não é justificada por qualquer especial razão, mas o fato é que não há como justificá-la, exceto por uma oportuna mudança de política fiscal que, certamente, dada a situação da economia, está em sentido inverso às necessidades atuais. Ao inverso, se aperfeiçoado esse instrumento, certamente mais investidores serão atraídos para o mercado brasileiro.
Além dessas revogações que, diga-se, são feitas sem atender aos próprios fundamentos que são indicados na Exposição de Motivos, a suposta modernização do sistema, há outras alterações que não trazem em si qualquer viés de reforma ou modernização, sendo inoportunas no momento e, como já se disse, servindo apenas para aumentar a carga tributária. É o caso da alegada harmonização de tratamento da dedutibilidade de custos e despesas para fins de IRPJ e de CSL, que convivem no sistema desde 1989. Com isso, passam a ser aplicáveis para fins de CSL os limites e condições de dedução, previstos para IRPJ, de diversas despesas: royalties, aluguéis, gratificações e participações de diretores, assistência técnica com o exterior e publicidade. O argumento da harmonização, apenas para permitir a indedutibilidade, carece de qualquer melhor fundamento de política fiscal, neste momento tão difícil.
Há muitas outras mudanças no IRPJ e na CSL, como é o caso da alteração do período base de apuração que passa a ser trimestral, dos limites à compensação do prejuízo fiscal, à redução nas hipóteses admitidas ao uso do critério de lucro presumido. Uma das mais intrigantes alterações diz respeito aos critérios de amortização do intangível que, na ausência de previsão contratual, deve seguir o critério contábil estrangeiro de 20 anos, a despeito de vivermos tempos em que a tecnologia é peça chave nas empresas e, em pouquíssimo tempo, se torna obsoleta. Tenta-se , mais uma vez, impor a tributação da variação cambial de investimentos no exterior, além de obrigar que o aumento/redução de capital em bens se faça pelo valor de mercado, afora inoportunas alterações no mercado financeiro, sempre com o objetivo de aumentar a arrecadação.
No que tange à pessoa física, a proposta de alterar a tabela de incidência do imposto sobre a renda na fonte veio cercada da ideia de que tal intento somente será possível se for majorada a tributação da pessoa jurídica. A faixa de isenção a que a pessoa física faz jus, de acordo com a Constituição,[7] corresponde ao mínimo existencial que um cidadão necessita para viver com dignidade, sendo que a não atualização desses valores retira-lhes essa condição, inclusive afetando sua liberdade. A atualização dessa tabela é dever do Estado, sob pena de irreparável dano a todos. Com isso não prospera condicionar a sua atualização à aprovação de outras fontes de custeio, especialmente a tributação dos dividendos, pois essa nos parece uma negociação impossível uma vez que essa atualização já deveria estar prevista nos orçamentos públicos por força dos princípios constitucionais que lhe são aplicáveis.
A nosso ver, e de forma breve, há tantas inovações que muito valeriam para as empresas brasileiras neste momento, a saber: (i) adoção da tributação em conjunto de empresas integrantes de grupos econômicos, que estaria suportada nas demonstrações financeiras consolidadas em IFRS[8], obrigatória para fins contábeis ; (ii) eliminação de qualquer influência do balanço individual em IFRS, no cálculo do IRPJ , assim afastando o alto custo de controlar subcontas e outros mecanismos para conciliar normas fiscais e contábeis; (iii) revisão dos critérios de dedução de royalties; (iv) revisão das obrigações acessórias e dos critérios de aplicação das multas, sua dosimetria, com o fito de torná-los mais consentâneos com a infração e com o patrimônio do infrator.
Por todas essas razões, a proposta é uma verdadeira catástrofe que se abate sobre o contribuinte, lembrando que a palavra catástrofe, de origem grega, — Katastrophé, de kata, para baixo; strophé, de strephein, subverto — designa a última parte da tragédia grega em que termina a ação dramática e na qual o personagem principal é lançado no mais triste fim. Significa desastre, desgraça, desfecho, fim da vida, morte.[9]
Toda essa referência ao teatro clássico apenas para afirmar que a reforma, além de não reformar, é uma catástrofe que se abate sobre o contribuinte nos mesmos termos em que se abatiam sobre os personagens do teatro grego. É confiar que nossos congressistas se apercebam dessa tragédia particular dos contribuintes e da economia, como um todo.
[1] Lei n. 13149/15
[2] A CBS deverá, se aprovada nos termos propostos, substituir cinco tributos federais a saber: 1) PIS/Pasep sobre a receita; 2) PIS/Pasep sobre a folha de salários; 3) Cofins; 4) PIS/Pasep-Importação; e 5) Cofins-Importação
[3] Lei n. 9249/95, art. 9°.
[4] Lei n. 9249/95, art. 10.
[5] Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [6] Lei n. 9532/77 [7] art. 145, §1° e art. 140, IV. [8] International Financial Reporting Standards[9] SILVEIRA BUENO, Francisco. GRANDE DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO-PROSÓDICO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Santos: Ed. Brasília Ltda, 1974, 2º vol. p. 648.
Elidie Palma Bifano é advogada em São Paulo, mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC/SP, professora no Curso de Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos Cursos de Especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU – IICS.
Fonte: ConJur