Reforma tributária: reforma da relação do Estado com os cidadãos
Brasileiros não conseguem saber de forma clara quanto pagam de tributos na compra de um bem
Júlio M. de OliveiraComo forma de suscitar algumas discussões sobre este tema tão relevante e há tanto tempo tratado, apresento, neste breve artigo, algumas ideias e provocações acerca do modelo tributário brasileiro. O modelo tributário brasileiro (não me arrisco a chamar o que temos de sistema) é caótico, regressivo, ultracomplexo, estimulador de litígios infindáveis (cerca de 3 ou 5 trilhões estimados – ninguém consegue saber ao certo), opaco, que não estimula o investimento, que não privilegia a segurança jurídica e cuja complexidade gera demandas administrativas intensas no setor público e no setor privado, características que são incompatíveis com o desejo de modernidade que está presente na sociedade brasileira.
Os cidadãos brasileiros não conseguem saber de forma clara quanto pagam de tributos na compra de um bem, na contratação de uma prestação de serviços e tampouco numa aplicação financeira. O custo excessivo do Estado está travestido de preço do produto ou do serviço. É muito cômodo camuflar a ineficiência e o alto custo do Estado brasileiro nos altíssimos preços que nós brasileiros pagamos ao comprar e contratar serviços.
Acostumamo-nos a ser cidadãos de segunda linha. Vivemos numa pré-revolução francesa. A grande maioria dos detentores de cargos públicos, eleitos ou não, não estão sintonizados com conceitos como cidadania e uso racional do dinheiro público. Ao contrário, parte expressiva age para manter um modelo tributário que garante e amplia os privilégios de sua classe. As garantias atribuídas ao setor público, que deveriam ser estendidas a todos os cidadãos, geraram bolsões de riqueza em meio à miséria que aflige a maioria da população brasileira. E o modelo tributário brasileiro é a âncora do nosso distanciamento da Bélgica pública e da Índia privada.
Por que será que somente no Brasil não é viável a criação de um IVA (ou o IBS) nacional, com legislação uníssona, respeito ao federalismo e garantia de arrecadação aos entes federados? Por que temos que manter tantos tributos complexos e geradores de litígios infinitos?
Parte do setor privado também se acostumou a ter um modelo tributário para chamar de seu! São tantos sub-modelos tributários, com incentivos fiscais diversos e inúmeras exceções que se torna inviável garantir a livre concorrência e a aplicação de regras republicanas a todos os contribuintes.
E, pelo que tudo indica, continuaremos nesta confusão por muito tempo. Como alertado pelo ex-ministro Maílson da Nóbrega, “O término da Comissão Especial da PEC 45 na Câmara do Deputados, decidida por seu presidente, Arthur Lira, foi um duro golpe nas esperanças de dotar o País de um moderno sistema tributação de consumo.” [1] Não parece haver vontade política de implementar uma reforma tributária verdadeira, que atinja as mazelas diversas do modelo anacrônico que coloca o Brasil nas últimas posições entre os países civilizados. E isto não acontece por acaso!
E ainda trazendo Maílson, “O caótico sistema tributário é hoje a principal fonte de ineficiências da economia. Inibe ganhos de produtividade. Freia a expansão do PIB e a geração de emprego e renda. A essência do desastre é a tributação do consumo e suas cinco confusas incidências: IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS.
A mais irracional de todas é o ICMS, impregnado de incontáveis regimes e inúmeras alíquotas.”[2] Ouso dizer que o PIS e a Cofins repetem o modelo desastrado do ICMS, pois também possuem regimes variados, uma não-cumulatividade diferenciada e pouco clara, além de um sistema de creditamento que gera inúmeros litígios, justamente por não ser claro. Que país admite existir uma não-cumalitividade específica para cada um desses tributos? Nem Kafka saberia externar uma opinião sobre a dita não-cumulatividade tributária brasileira.
O modelo de representação democrática no Brasil possui vícios que reduzem drasticamente a legitimidade dos nossos representantes. Talvez somente uma reforma política possa viabilizar uma reforma tributária moderna e capaz de colocar nosso país dentre as Nações dotadas de um sistema tributário baseado na transparência e na simplicidade, gerador de justiça fiscal.
Há os que justificam nosso caos tributário na complexidade da nossa Federação, nos inúmeros princípios constitucionais tributários agasalhados na Constituição Federal, o que conferiu status constitucional ao sistema tributário. Muitos dizem que não podemos ter um IVA nacional sob pena de destruir o pacto federativo.
Com o devido respeito aos que pensam dessa forma, esse raciocínio mantém o status atual de miséria de parte relevante da população brasileira, privilegiando um modelo tributário atrasado e que não colaborará para a modernização de nossa sociedade. Cria-se o direito adquirido ao atraso tributário. A garantia plena da regressividade e da opacidade dos tributos que se escondem nos preços brasileiros.
Um sistema tributário moderno e a racionalização do atual modelo do Estado brasileiro (o que só pode ser alcançado por uma sólida reforma administrativa) permitirão que o princípio da igualdade se torne realidade em nosso País, diminuindo a distância entre os pobres e os ricos e trazendo ao Brasil a feição de uma sociedade moderna, atraente aos investimentos, inovadora, retentora dos seus cidadãos em seu território e apta a permitir que o empreendedorismo individual e coletivo se desenvolvam.
Defendemos um sistema tributário que seja simples, progressivo, transparente e estimulador da riqueza. A riqueza não é um pecado! Nosso Estado é inchado e não fomenta a riqueza de seus cidadãos. Não é possível manter uma casta pública rica num País de miseráveis. Experiências fracassadas de tributação seletiva do consumo ou de tributação de grandes fortunas deveriam provocar nos nossos representantes a sanidade de copiar as boas experiências e se afastar das populistas e fracassadas tentativas. O tributo, por excelência, que deve medir a capacidade contributiva é o imposto sobre a renda, que deve ser estudado e aprimorado. Já a tributação do consumo deve ser neutra, simples, transparente e tendente a arrecadar.
Que o assédio das bandeiras fáceis dos populistas que ousam, em pleno século XXI, propagar que o Estado deve arrecadar mais para melhor distribuir, num País já repleto de muita arrecadação e carente de distribuição, não seduza nossos representantes com pomposos e relevantes aumentos de carga tributária, ainda que sob nomes sedutores, tais como CPMF, Imposto sobre grandes fortunas etc. Cada centavo vindo da iniciativa privada deveria obrigar o rastreamento do seu retorno para a sociedade, com a finalidade de diminuição da miséria e da ineficiência histórica do estado brasileiro.
A evolução da relação entre o cidadão, seus representantes no Poder Legislativo e o Estado Brasileiro passa necessariamente pela criação de um sistema tributário que permita a cada cidadão conhecer o valor dos tributos que paga em sua vida cotidiana, bem como o quanto seus concidadãos pagam ou deixam de pagar. Um Brasil transparente deve permitir a todos saber qual parte do preço do produto ou serviço remunera o produto comprado e qual é destinada para custear o Estado e sua máquina. Não há cidadania verdadeira se o cidadão-contribuinte estiver impedido de se ver como pagante e não pedinte do Estado e de sua máquina. Considerando que o Estado não gera riqueza, deve, ao menos, cuidar bem do interesse público e evitar se esconder da efetiva fiscalização que a transparência impõe.
[1] Artigo publicado no O Estado de S.Paulo, dia 30.05.2021
[2] Idem
Júlio M. de Oliveira – Sócio líder das áreas de impostos indiretos e contencioso tributário no Machado Associados, atua em importantes processos tributários no Brasil relacionados a impostos diretos e indiretos, bem como impostos incidentes sobre a folha de pagamento, além de prestar serviços de consultoria a grandes empresas nacionais e internacionais. Júlio integra diversos comitês e associações formados por empresas que buscam aprimorar o sistema tributário brasileiro.
Fonte: JOTA