"Centrão seria um dos maiores beneficiados por reforma administrativa", diz consultor
Desde o escândalo sobre a tentativa de aquisição da vacina indiana Covaxin, os defensores da reforma administrativa têm uma pedra no sapato: foi um servidor de carreira, com estabilidade, que impulsionou as denúncias que jogaram luz ao suposto esquema.
Para o consultor Vladimir Nepomuceno, a situação revela um dos piores aspectos da chamada reforma administrativa: a possibilidade de enfraquecer os serviços públicos com a redução da estabilidade dos servidores e o consequente avanço de setores fisiológicos sobre o Estado. Confira a entrevista abaixo.
Reconta Aí - A denúncia feita pelo servidor do Ministério da Saúde Luis Miranda sobre possíveis irregularidades na aquisição da Covaxin teve algum impacto sobre as discussões da reforma administrativa no Congresso?
Vladimir Nepomuceno - Podemos dizer que a denúncia feita por um servidor concursado serviu para reforçar a importância da estabilidade com garantia fundamental para o exercício da atividade pública, não apenas para as chamadas atividades típicas ou exclusivas de Estado. A necessidade de proteger servidores de pressões políticas para que eles possam agir diferente do que é atribuição do cargo efetivo, garantida por lei, ficou muito mais evidente.
Isso contribuiu positivamente para a discussão na Câmara dos Deputados sobre a reforma administrativa, ficando clara a fragilidade da defesa de estabilidade e outras garantias apenas para poucas carreiras, deixando o conjunto do funcionalismo ao sabor do desejo de governos de plantão. Há, ainda, a tentativa dos defensores da reforma de não vincular o fato à proposta do governo. No entanto, cada vez mais parlamentares se declaram contra essa medida constante da PEC [Proposta de Emenda Constitucional], o que força o relator a ter que considerar alterações no texto em relação ao tema.
Reconta Aí - A emenda apresentada por um conjunto de parlamentares que estende o conceito de carreira típica de Estado vem no bojo dessa situação?
Vladimir Nepomuceno - A garantida da estabilidade para o conjunto dos servidores públicos é vista como defesa de um serviço público impessoal, funcionando dentro dos limites legais, o que assegura o direito à prestação de todos os serviços públicos a toda a população, indiferente de posição social, econômica e política. Esse é o ponto central da emenda apresentada pela coordenação da Frente Parlamentar Mista do Serviço Público.
Pelo projeto apresentado pelo Governo, nenhum servidor da área da saúde seria considerado como ocupante de cargo típico de Estado, desde o mais alto cargo do Ministério da Saúde até o mais distante servidor da saúde municipal. O servidor em questão na denúncia do Ministério da Saúde trabalha na área de logística, serviço que existe em todos os órgãos públicos, nos três poderes e nas três esferas de governo. Uma área estratégica em todos os seguimentos da administração pública, uma vez que trata da gestão de bens e serviços adquiridos por todos os órgãos públicos.
Na saúde, por exemplo, em todos os níveis de governo, envolve a aquisição de medicamentos, vacinas, equipamentos médico-hospitalares, entre outros a serem utilizados no atendimento direto à população e que estaria desprotegida das incursões políticas de toda sorte. O mesmo aconteceria com os profissionais de saúde latu sensu, que poderiam ser forçados a atender pessoas por indicação política, não respeitando os critérios existentes de ordem de atendimento.
A mesma visão pode ser facilmente aplicada nas demais áreas responsáveis pela execução das políticas e direitos sociais, com destaque para os onze direitos sociais, constantes do artigo 6º da Constituição Federal, com especial atenção à parcela mais necessitada da população.
Reconta Aí - Nesse sentido, como sabemos que a negociação de cargos faz parte da lógica da política brasileira, principalmente por parte do chamado Centrão? A proposta original do Governo beneficiaria esse setor político?
Vladimir Nepomuceno - Podemos garantir que o Centrão seria um dos segmentos mais beneficiados com a proposta na forma apresentada pelo Governo. E seria de duas formas. A primeira com o fim da estabilidade e de outros direitos dos servidores, além do fim do concurso público, que aumentaria a possibilidade de contratação de indicados politicamente e de terceirizados. Dessa forma estaria literalmente reinstalado o patrimonialismo, como no período que foi do fim da monarquia até a década de 30 do século passado, onde os limites do público e do privado eram inexistentes para os poderosos nas diversas regiões do País.
Seria a institucionalização do coronelismo em todas as áreas do que restar de serviço público.
A segunda forma seria a possibilidade de entrega de boa parte do serviço, em especial os de atendimento básico às necessidades da população, prestados hoje pelos municípios, como saúde, educação e assistência social, mas não exclusivamente. Nesse caso, o Centrão se beneficiaria através da entrega dos serviços a organizações sociais e outras entidades sem fins lucrativos, obviamente ligadas aos mesmos coronéis patrimonialistas. Em ambos os casos, também existiria a prática da indicação política para definir quem seria ou não atendido nessas instituições.
Um outro segmento a se beneficiar da redução de atividades do serviço público seria o das empresas privadas com fins lucrativos do mercado privado. Segmento hoje representado por 40% dos deputados federais e 47% dos senadores. O texto proposto cria um novo artigo (37-A) que permite a exploração, por essas empresas, das atividades hoje a cargo de órgãos públicos, com universidades, hospitais de alta complexidade, pesquisa científica, produção, desenvolvimento e distribuição de vacinas e medicamentos, entre outros.
Esse, inclusive, é o eixo central da reforma administrativa: a entrega dos serviços públicos à exploração econômica e política do que deveria ser considerado direito da população, nunca em benefício de um ou outro setor da classe dominante. A precariedade das relações entre servidores e empregados públicos é parte fundamental nesse processo.