Coisa julgada administrativa e a nova ferramenta de pesquisa do Carf
Por Maysa de Sá Pittondo Deligne e Thais de LaurentiisEm sessão de julgamento de setembro de 2021, justamente no mês em que ocorreu o lançamento da obra "Efeitos das decisões no Processo Administrativo Tributário" [1], tivemos a oportunidade de debater em nosso colegiado sobre as polêmicas que circundam o instituto da coisa julgada administrativa [2]. Nesse contexto, em pesquisa de jurisprudência a respeito do tema, pudemos perceber uma significativa melhora nos resultados de pesquisa de acórdãos (aba "Nova Pesquisa de Acórdãos — VER") quando comparada com a anterior (aba "Acórdãos CARF"), ambas disponíveis no site do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Conforme nota publicada pelo Carf em abril de 2021, a nova ferramenta de pesquisa denominada "VER" buscou trazer resultados mais rápidos, facilitando a busca por palavras chaves dentro das ementas e votos proferidos no órgão, no objetivo de ampliar suas ações de transformação digital [3].
Ao pesquisarmos na ferramenta "Acórdãos CARF" o termo "coisa julgada administrativa" (entre aspas) para o período de janeiro/2000 a outubro/2021 considerando "Ementa+Decisão", nenhum registro foi encontrado. Sem as aspas, foram localizados 603 acórdãos, sendo que aqueles que aparecem na primeira página da pesquisa se referem à coisa julgada judicial, sem qualquer referência direta à discussão em torno da coisa julgada administrativa. Por sua vez, na ferramenta "Nova Pesquisa de Acórdãos — VER" a pesquisa pelo signo "coisa julgada administrativa" (entre aspas) retornou com 798 resultados, sendo que na primeira página todos os acórdãos faziam referência especificamente à aplicabilidade da coisa julgada administrativa no âmbito do processo administrativo fiscal, em especial, do Carf [4].
Analisando as decisões trazidas por essa última pesquisa jurisprudencial, constatamos que a grande maioria das manifestações do Carf a respeito do tema vê a coisa julgada administrativa conforme tradicionalmente conceituada por Hely Lopes Meirelles, vale dizer, como uma preclusão de efeitos internos, que também pode ser chamada de irretratabilidade, a qual "não tem o alcance da coisa julgada judicial, porque o ato jurisdicional da Administração não deixa de ser um simples ato administrativo decisório, sem a força conclusiva do ato jurisdicional do Poder Judiciário [5]".
Com efeito, tais manifestações do Carf reconhecem a existência de uma "coisa julgada administrativa" com eficácia unicamente interna ao processo, sem estabilidades para outros processos ou para casos futuros [6]. Nesse raciocínio, não há reflexos da decisão para o futuro ou para outros processos administrativos do mesmo sujeito em curso relacionados à matéria de mérito idêntica. Cada lide administrativa do sujeito passivo é considerada como autônoma, para a revisão de cada lançamento de ofício nele constituído. Ainda que dois processos possuam idêntica causa de pedir, envolvendo a revisão de dois atos administrativos fundados nos mesmos motivos (pressupostos de fato e de direito idênticos), com mesmas motivações, eles poderiam culminar em conclusões/decisões opostas, por terem sido formalizados em processos diferentes. Nesse sentido, eventuais decisões favoráveis ao sujeito passivo são aplicadas, restritamente, aos processos nos quais foram exaradas e aos atos nele revisados, não atingindo, necessariamente, outros processos, mesmo que fundados em questões idênticas [7].
Especificamente nesse sentido, o Acórdão 3402-005.586 coloca que "eventuais conclusões de procedimentos fiscais anteriores efetuados em face da contribuinte (...), ainda que em decisão administrativa definitiva, não vinculam a autoridade fiscal em ações fiscais posteriores, relativas a outros fatos geradores" [8]. A possibilidade de aplicação de efeitos extraprocessuais de uma decisão definitiva para atingir outros processos é admitida, apenas, quando o ato do outro processo envolva o mesmo tributo e fatos geradores idênticos, como ocorrido no Acórdão 2201-003.425 [9]. Essa posição foi recentemente adotada no Acórdão 3302-010.542, admitindo a necessidade de se aplicar a mesma decisão para processo conexo, nos termos do Regimento Interno do Carf (auto de infração e pedido de ressarcimento) [10]. Outras decisões identificadas com base na nova ferramenta de pesquisa "VER" confirmam a aplicação do termo "coisa julgada administrativa" quando se busca reconhecer a preclusão dentro do próprio processo, nas hipóteses de reconhecimento de intempestividade do Recurso Voluntário ou mesmo quando o sujeito passivo procedeu com o pagamento do valor cobrado via lançamento, desistindo da discussão administrativa [11].
Há, de outro lado, precedentes admitindo a existência de coisa julgada na seara administrativa e a possibilidade de atribuir efeitos materiais às decisões. Apontam-se julgados do Carf garantindo efeitos de coisa julgada material administrativa para decisões contrárias ao sujeito passivo (favorável à pretensão fazendária), ainda que passíveis de reforma pelo Poder Judiciário [12].
Por fim, existem também manifestações isoladas que invocam o instituto da coisa julgada administrativa para tratar dos efeitos materiais da decisão administrativa definitiva favorável ao sujeito passivo. É o que se depreende do Acórdão nº 2201-003.538 [13], no qual a coisa julgada administrativa é considerada como uma qualidade atribuída a qualquer pronunciamento final exarado pela Administração, não suscetível de recurso administrativo. Outro julgado que evidencia a preocupação com os efeitos materiais e extraprocessuais das decisões administrativas irreformáveis é o Acórdão nº 3402-005.145, no qual o relator foi acompanhado pela conclusões pela turma ao buscar garantir efeitos extraprocessuais à decisão [14].
Por meio da nova ferramenta de busca VER, foi possível ainda ter acesso ao Acórdão 203-09.657 [15], do então Segundo Conselho de Contribuintes. Trata-se de caso particularmente interessante, no qual a fiscalização buscou revisar a posição externada pelo Conselho em processo anterior de ressarcimento de IPI do mesmo contribuinte, não apenas para reconhecer um valor de crédito a menor no mesmo período, mas também para lavrar auto de infração. Numa breve síntese, nesse caso, a autoridade lançadora afastou a decisão administrativa final proferida de forma favorável ao sujeito passivo quanto ao mesmo período de apuração, o que foi rejeitado pelo Conselho no referido acórdão.
Esse contexto faz lembrar o alerta feito por Antonio do Passo Cabral, no sentido de que a doutrina brasileira possui um "cacoete" acadêmico de sempre buscar aproximar as figuras das decisões jurisdicionais à coisa julgada, sendo que “ou há coisa julgada, e, portanto se torna um conteúdo estável no processo, ou não há coisa julgada, e tudo está aberto podendo ser revisto” [16]. Também no âmbito da jurisprudência do Carf essa provocação pode ser aventada, diante da ausência de uma posição coesa sobre a coisa julgada administrativa no Carf, parecendo o órgão tatear em busca das arestas que definem o instituto, assim como ocorre em sede doutrinária.
O que se pretende com esse artigo é, primeiramente, exaltar a nova ferramenta de pesquisa disponibilizada pelo Carf, "VER", que é dotada de maior eficiência e direcionamento de busca quando comparada com a anterior, mostrando-se como forma ideal para investigações de termos específicos [17]. Ademais, pretende-se evidenciar a ausência de uniformidade no trato da famigerada coisa julgada administrativa na jurisprudência do CARF.
Com isso, alfim, almeja-se ampliar o debate a respeito da estabilidade das decisões administrativas e seus efeitos nas futuras ou pendentes relações jurídicas controvertidas — objeto do contencioso tributário, nos moldes do Decreto 70.235/72 e dos diplomas normativos a ele subsidiários —, como proposto na contemporânea doutrina administrativista [18], bem como no livro "Efeitos das decisões no Processo Administrativo Tributário" recentemente publicado, cujo primeiro de tantos méritos é trazer toda essa apaixonante discussão especificamente para o âmbito do Carf.
[1] DELIGNE, Maysa de Sá Pittondo. Efeitos das decisões no processo administrativo tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2021. [2] Julgamento do processo 11060.720120/2012-81, em sessão de setembro/2021, que resultou no Acórdão 3402-009.022. [3] Nota publicada em 05/04/2021, disponível em http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2021/carf-lanca-nova-ferramenta-de-busca-de-acordaos. [4] Pesquisa realizada em 24/10/2021. Disponível em https://acordaos.economia.gov.br/solr/acordaos2_shard10_replica_n54/browse?q=%22coisa+julgada+administrativa%22. Acesso entre 01/10/2021 e 24/10/2021. [5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 815. [6] A título de exemplo: Acórdão nº 202-16210. [7] DELIGNE, Maysa de Sá Pittondo. Efeitos das decisões no processo administrativo tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 171. [8] Acórdão 3402-005.586, de 25/09/2018. Conclusão alcançada também no acórdão 3402-009.011, de 20/09/2021, referenciado acima. [9] Acórdão 2201-003.425, de 08/02/2017. [10] Acórdão 3302-010.542, de 24/02/2021. [11] Acórdão 3402-001.211, de 01/06/2011, Acórdão 3402-001.148, de 04/05/2011, Acórdão 2402-005.363, de 15/06/2016, Acórdão 2402-005.289, de 11/05/2016 [12] A título de exemplo: Acórdão 2302-003.516, de 02/12/2014, Acórdão 2401-004.298, de 14/04/2016. [13] Acórdão 2201-003.538, de 16/03/2017. [14] Acórdão 3402-005.145, de 18/04/2018. [15] Acórdão 203-09.657, de 06/07/2004. [16] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 317. [17] Esse elogio não busca denegrir de qualquer forma a ferrramenta de pesquisa anterior, que igualmente se mostra excelente para pesquisas de temas mais amplos. [18] Por tudo, citamos MOREIRA, Egon Bockmann; GOMES, Gabriel Jamur. A indispensável coisa julgada administrativa. Revista de Direito Administrativo, [S.L.], v. 277, n. 2, p. 239-277, 24 ago. 2018. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/76711/73711. Acesso em: 20 out. 2021. Maysa de Sá Pittondo Deligne é doutora e mestre em Direito Tributário pela USP, professora de Direito Tributário de cursos de pós-graduação, conselheira titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento e diretora da Abradt. Thais de Laurentiis é conselheira titular e vice-presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, árbitra no Centro Brasileiro de Mediação a Arbitragem (CBMA), doutoranda e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), este cursado conjuntamente no Institut d`Études Politiques de Paris (SciencesPo), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet) e professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária. Fonte: ConJur