O agravamento da crise política no Paraguai deixou enorme incerteza sobre a manutenção de um acordo alcançado com o Brasil, no dia 24 de maio, em torno da quantidade de energia da usina binacional de Itaipu que é contratada pelo país vizinho.
Está em jogo uma diferença de aproximadamente US$ 250 milhões - quase R$ 1 bilhão pelo câmbio atual - entre o volume "declarado" de compra pelo Paraguai e o que é efetivamente consumido. O valor do acordo, que deflagrou uma série de demissões na cúpula do governo paraguaio e ameaça o futuro do presidente Mario Abdo Benítez, se reverteria em economia a favor dos consumidores brasileiros em quatro anos (2019 até 2022).
A crise no país vizinho subiu ontem mais alguns degraus com a demissão do chanceler Luis Alberto Castiglioni, do diretor-geral de Itaipu pelo lado paraguaio e do presidente da Administração Nacional de Eletricidade (Ande). O embaixador do Paraguai em Brasília, Hugo Saguier, também caiu.
Sem nenhuma divulgação pública, Brasil e Paraguai chegaram a um acordo no fim de maio sobre o montante da energia que é destinado para cada lado. O Tratado de Itaipu define a divisão, em partes iguais, da potência da hidrelétrica. Só que os paraguaios consomem apenas uma fração do que têm direito - menos de 15% da geração total. O restante é comprado pelo Brasil.
Reclamação do governo brasileiro: o Paraguai tem indicado todos os anos, desde 2002, uma estimativa de consumo energia inferior à realmente verificada. Na prática, vem subcontratando a energia de Itaipu. Essa diferença se acentuou recentemente. "Nos últimos quatro anos, o consumo de energia do Paraguai aumentou 40%, mas suas indicações anuais apontavam variação de 8%", afirma um negociador em Brasília.
A Eletrobras vem assumindo o ônus dessa distorção. Como não deve ter lucro nem prejuízo com a usina binacional, o custo é integralmente repassado aos consumidores brasileiros das distribuidoras de energia em três regiões - Sul, Sudeste e Centro-Oeste.
A estatal paga US$ 43,80 por cada megawatt-hora das "sobras" de energia que o Paraguai indica, a cada início de ano, não consumir internamente. E desembolsa mesmo esses valores.
Contudo, quando o Paraguai excede suas estimativas de consumo, paga uma tarifa bem menor: cerca de US$ 6 - o valor da chamada "energia excedente", ou seja, o que é produzido acima da potência oficial graças a chuvas mais fortes e reservatórios mais cheios. O governo paraguaio tem utilizado essa energia barata, inclusive, para atrair indústrias.
Um acordo para acabar com essas distorções foi costurado, no fim de maio, mediante a interferência direta dos ministérios das Relações Exteriores de cada país. Não houve entendimento técnico entre as autoridades da área energética. Esse acordo, registrado em ata, previa uma evolução gradual do consumo paraguaio: hoje está em 1.270 MW médios, iria para 1.534 MW em 2020 e continuaria subindo até 1.924 MW em 2022.
O efeito líquido da negociação, conforme apurou o Valor, seria de US$ 250 milhões em quatro anos. O acordo era considerado um "compromisso político-diplomático" que ganharia validade jurídica somente com a assinatura de um contrato formal.
Foi no processo de confirmação do acordo entre os dois países que houve a reviravolta. Pedro Ferreira, ex-presidente da Ande, recusou-se a assinar o contrato e declarou que esse instrumento seria lesivo aos interesses do Paraguai. Ele alegou que não tinha conhecimento dos detalhes negociados. Isso deu munição aos opositores para falar até em impeachment do presidente Abdo.
Reservadamente, o governo brasileiro repudia a atitude de Ferreira e vê interesse político em sua "denúncia", garantindo que ele estava a par dos termos em negociação. A intenção é seguir firme no propósito de equacionar o problema dos volumes da energia de Itaipu. Há um reconhecimento, porém, de que a crise política supera questões energéticas ou diplomáticas. Os próprios signatários da ata do dia 24 de maio, pelo lado paraguaio, não estão mais em seus cargos. Por isso, o futuro do acordo é imprevisível.
Como fazem questão de ressaltar todas as autoridades brasileiras ouvidas pelo Valor, o acordo não afeta a renegociação do Anexo C, parte do Tratado de Itaipu que vence em 2023. Nesse ano, segundo as interpretações majoritárias, o Paraguai fica livre da exigência de vender ao Brasil tudo o que não consome da usina.
Uma fonte diplomática lembrou que, nas tratativas com o governo paraguaio, o termo usado foi "sinceramento" (palavra comum em espanhol) da quantidade de energia efetivamente consumida. "Diferentemente do que está sendo dito no Paraguai, não há amarras à contratação de mais energia pelo país e nós incentivamos isso", disse a fonte, lembrando que o PIB tem crescido mais de 4% nos últimos anos e que a linha de transmissão Itaipu-Assunção foi financiada em grande parte pelo Focem (fundo de convergência do Mercosul), com recursos brasileiros a fundo perdido. O linhão livrou a capital dos constantes apagões.
Valor