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A reforma tributária não está morta, como sugerem seus críticos; tampouco a PEC 110, em curso no Senado Federal, atende à melhor técnica jurídica ou está madura o suficiente para entrar em vigor de imediato, como alegam seus defensores. Muitos temas ainda não foram adequadamente examinados. Dentre tantos, o das cooperativas no trato com os cooperados, nas relações do chamado “ato cooperativo”.
Vale recordar que a reforma tributária tem como objetivo unificar o PIS e a Cofins, mediante a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), bem assim como instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), como forma de substituir o ICMS, o ISS e o IPI. O mote central é aquele de simplificar a tributação sobre o consumo de bens e serviços.
A força do cooperativismo não pode ser desprezada. Segundo dados do Anuário do Cooperativismo Brasileiro de 2021, elaborado pelo Sistema OCB, até dezembro de 2020, o país possuía 4.868 cooperativas, com mais de 17 milhões de cooperados, com ativos totais de R$ 655 bilhões.
A cooperativa é espécie de sociedade constituída mediante contrato plurilateral, que tem por finalidade alcançar o interesse comum dos membros, na dupla qualidade de sócios-usuários, por atos cooperativos internos e externos, e criação de um patrimônio comum irrepartível para a manutenção da entidade.
O inciso XVIII, do art. 5º, da Constituição, assenta que a criação de cooperativas, na forma da lei, independe de autorização. Certo de que essa “autorização” não tem que ver com qualquer óbice à existência, e nem poderia, mas com o estabelecimento de requisitos necessários para serem atendidos, na forma da lei. Disso resulta o “princípio da autonomia constitucional do cooperativismo”, a sujeitar o tema a regime jurídico bastante específico.
A estruturação de cooperativas constitui direito de opção decorrente da ampla liberdade de organização dos trabalhadores, produtores ou prestadores de serviços. Por atuarem em âmbito privado, revelam-se distintas da atuação do Estado (i) e, também, não se confundem com as sociedades, sejam estas empresárias, fundadas na pretensão do lucro (ii), civis ou fundacionais, desprovidas de fins lucrativos (iii).
Deve fomentar o “ato cooperativo”, com regras claras e objetivas, na linha do que exige o art. 146, III, “c” da CF, ao prever que cumpre à lei complementar conferir “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”. Até o momento, contudo, essa lei complementar não foi editada.
A previsão do art. 146, III, “c” da CF, deve ser apreciada como corolário do parágrafo único do art. 174 da CF, ao prescrever que “a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo”. E todos os estudos escritos no país são unânimes em afirmar a exigência de tratamento tributário favorecido ou, quando menos, neutro aplicável às cooperativas, mediante tal lei complementar.
Pode-se não saber ao certo o que seja tratamento “adequado”, mas certamente saberemos o que significa tratamento “inadequado”, que será sempre aquele que prejudique ou descumpra o ato cooperativo, levando a cooperativa a submeter-se a uma carga tributária superior àquela aplicável a empresas.
Para evitar que a unificação dos tributos se preste como medida para agravar os custos tributários e obrigações das cooperativas, em boa hora, veio-nos a emenda nº 235 à PEC 110, do senador Luis Carlos Heinze, que introduz o § 2º ao art. 146 da CF, para afirmar que o “ato cooperativo” são aqueles: “praticados entre as cooperativas e seus cooperados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, não implicando operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto, mercadoria e serviços, incluindo os negócios jurídicos realizados por conta e interesse dos cooperados, para a consecução dos objetivos sociais, sem representar receita, faturamento, resultado, vantagem ou acréscimo patrimonial para a cooperativa.”
Desse modo, apoiar e estimular o cooperativismo, como pede o art. 174, parágrafo único, da CF, significa respeitar a diferença típica do ato cooperativo. Todos os atos cooperativos consistem em negócios plurilaterais, como observa Tulio Ascarelli, a partir das relações entre sócio-usuário e cooperativa, sob a forma de prestações de serviços desta àquele, quanto à realização dos seus propósitos na intermediação com terceiros.
O “adequado tratamento” do ato cooperativo está neste dever de respeito, pelo Estado, às diferenças das cooperativas, diante se seu papel econômico e social. Nisto, não há paternalismo, mas realização de regras constitucionais que devem nortear toda a reforma tributária. Como recorda Fábio Konder Comparato, a cooperativa “não constitui uma organização dirigida para o mercado, mas voltada para dentro, para os próprios cooperados”.
Por todos estes motivos, a reforma tributária precisa assumir um compromisso de neutralidade e de preservação dos efeitos privados das relações internas do cooperativismo, com regras dirigidas ao fortalecimento da segurança jurídica dos cooperados e à garantia de que não haverá aumento de carga tributária.
* É advogado e professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP.