A proposta de reforma administrativa e a desigualdade
Nenhuma proposta de reforma administrativa adereçou até agora um dos problemas centrais do serviço público: a desigualdade endógena
Vivemos em um país evidentemente desigual. Segundo dados do Banco Mundial, o Brasil figura entre os países com os maiores índices de Gini (53.4 em 2019). Nesse contexto, a redução das desigualdades é frequentemente utilizada para justificar o empreendimento de diferentes reformas, entre as quais se encontram medidas para modificar a administração pública. Alguns defensores da reforma administrativa argumentam que a redução da máquina pública serve ao propósito de combater privilégios e diminuir consequentemente parte das desigualdades sociais.
Mudanças no sistema de aposentadoria, alterações na estrutura de cargos e diminuição da quantidade de órgãos são algumas das medidas defendidas. Ironicamente, nenhuma reforma administrativa adereçou, de forma efetiva, um dos problemas centrais do serviço público: a desigualdade endógena. Desde a primeira tentativa de reforma, durante o governo de Getúlio Vargas, os esforços concentraram-se na profissionalização da burocracia. De forma semelhante, a reforma gerencial de 1995, liderada pelo MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado), tinha como uma de suas finalidades o fortalecimento do núcleo do Estado.
De fato, a profissionalização da burocracia é um dos elementos relacionados à racionalização do aparato e ao desenvolvimento de capacidades estatais, conceito que remete, de forma geral, à capacidade do Estado em implementar políticas. Ainda que as fronteiras entre política e administração não sejam tão nítidas quanto a teoria prevê, a profissionalização é um dos elementos centrais do conceito de “burocracia”. Em outras palavras, a capacidade do Estado em implementar políticas depende da existência de um corpo técnico competente capaz de colocá-las em prática.
Mas o que define “competência” e “capacidade”? Quais são os fatores que incidem sobre a capacidade da burocracia em implementar políticas? Essas perguntas levam à necessidade de analisar o perfil dos servidores públicos e os incentivos que permeiam seus comportamentos. Segundo dados do PEP (Painel Estatístico de Pessoal) e de estudos anteriores, o nível de instrução dos servidores públicos federais tem aumentado nos últimos anos. Mas, aparentemente, isso não resultou em serviços melhores. De forma geral, parte relevante da população brasileira avalia mal os serviços prestados pelo Estado. Além disso, há uma crítica constante ao patrimonialismo e às relações clientelísticas, que remetem à apropriação do público por partes privadas. Quais seriam os fatores institucionais que estariam por trás da ineficiência burocrática no Brasil?
Um deles possivelmente remete ao processo de recrutamento de servidores públicos. No Brasil, há duas formas de ingresso no serviço público: concurso público e livre provimento. Ainda que não seja uma forma de seleção perfeita, o concurso está relacionado a uma dinâmica de “universalização de procedimentos” uma vez que confere certo nível de impessoalidade à escolha. Por outro lado, o sistema de livre provimento, como o nome já deixa claro, está sujeito à discricionariedade das autoridades responsáveis pela nomeação. Na ciência política, os cargos são tratados frequentemente como moedas de troca entre partidos e presidente, ainda que estudos mais recentes indiquem que as filiações partidárias não são o único fator ou o mais importante no processo de nomeação.
Um aspecto ainda mais preocupante consiste na falta de transparência desses processos de indicação e nomeação. Uma pesquisa recente do Tribunal de Contas da União constatou que predomina a falta de critérios claros e processos bem definidos na indicação e nomeação de indivíduos para cargos de alto escalão da burocracia – justamente os cargos mais importantes na formulação e na implementação das políticas. A falta de transparência contribui para a seleção de pessoas pouco engajadas com os temas tratados, sem experiência ou o conhecimento técnico necessário. Isso não significa que a politização seja necessariamente negativa para fins gerenciais. Como já destacou Regina Pacheco em 2002, as funções dos dirigentes públicos exigem habilidades comunicativas e políticas, uma vez que tais agentes estão em constante interação com a sociedade. Além disso, a politização da burocracia está relacionada a questões de responsividade, visto que as políticas não podem estar deslocadas das demandas sociais. Nesse sentido, eliminar totalmente as nomeações discricionárias não parece ser uma boa alternativa. No entanto, reduzir o livre provimento às nomeações de indivíduos sem experiência ou compromisso com o serviço público traz riscos graves à capacidade estatal e à implementação de políticas.
De forma geral, parte relevante da população brasileira avalia mal os serviços prestados pelo Estado. Quais seriam os fatores institucionais que estariam por trás da ineficiência burocrática no Brasil?
Dessa forma, parece que o Brasil tem pecado tanto pelo excesso – de nomeações questionáveis – quanto pela falta – de transparência e critério. Apesar dos critérios estabelecidos pelo Decreto 9.727, de 2019, uma observação mais minuciosa do padrão de nomeações das secretarias federais mostra que nem sempre esses requisitos são atendidos. Além disso, o próprio decreto prevê uma cláusula de excepcionalidade, a qual pode ser utilizada segundo a vontade dos decisores. Para reforçar tal quadro, o governo aprovou uma nova Medida Provisória (1.042, de abril de 2021) que modifica todo o sistema de cargos do Executivo Federal. Em suma, a MP confere ainda maior discricionariedade ao governo ao permitir que a maioria esmagadora dos cargos de livre provimento seja destinada a pessoas sem vínculo com o serviço público – antes o percentual formal obrigatoriamente destinado a servidores de carreira era muito maior. Se a vinculação formal ao serviço público não garante conhecimento ou competência, ela, ao menos, contribui para selecionar pessoas com maior expertise em administração pública e com posições mais estáveis. Sobre esse aspecto, é notável que o alto nível de instabilidade nas nomeações (troca-troca das cadeiras) pode comprometer a continuidade das políticas – como tem demonstrado a área de saúde na pandemia.
Um segundo elemento, mais frequentemente ignorado por estudiosos e tomadores de decisão, refere-se às desigualdades entre as próprias carreiras estatais. Enquanto o imaginário popular constrói uma figura de “servidor” baseada em salários altos, estabilidade e privilégios, a realidade é um pouco mais complexa. Ainda segundo dados do PEP, os salários no Executivo Federal variam entre aproximadamente R$ 1.000 e R$ 32 mil, ou seja, variam praticamente entre o salário-mínimo e o teto do funcionalismo público. A diferença é discrepante entre os quadros “técnicos” e as carreiras que compõem o alto ciclo de gestão. Isso sem adentrar nas assimetrias espetaculares entre Executivo, Legislativo e Judiciário. De forma semelhante, dados do Atlas Brasileiro indicam a presença maior de indivíduos com determinadas características nos cargos de alta gestão. A quantidade de homens em posição de chefia superior (níveis 5-6) é substancialmente maior que a de mulheres, ainda que a quantidade de servidores de ambos os sexos seja similar.
Se, de um lado, as iniciativas se mostraram insuficientes quanto ao aspecto da profissionalização, o combate à desigualdade é praticamente inexistente nas propostas de mudança. Parece, no mínimo, estranha uma reforma administrativa que visa declaradamente combater privilégios e reduzir custos, mas não toca nessas questões. Na contramão, aliás, o governo elevou o salário de uma camada já suficientemente privilegiada do setor público. Dessa forma, ao passo que a necessidade de uma reforma administrativa deve ser reconhecida, ela não pode ser feita de “qualquer jeito”, sem um estudo prévio dos órgãos e suas estruturas, o que inclui uma análise responsável das potencialidades e dos gargalos das carreiras estatais, da desigualdade interna à administração. Na defesa de uma reforma administrativa que ignore tais questões, o combate aos privilégios não passa de um instrumento retórico. Afinal, lutar contra benefícios injustificados implica necessariamente promover mais igualdade de oportunidades, princípio que ainda enfrenta muitos desafios na administração pública brasileira.
Nayara F. Macedo de Medeiros Albrecht é pesquisadora de pós-doutorado em ciência política da Universidade Federal de São Carlos, bolsista da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e membro de comitês da IPSA (Associação Internacional de Ciência Política). Desenvolve projeto sobre burocracia e políticas públicas. Foi servidora pública federal entre 2014 e 2020. Fonte: Nexo Jornal