A reforma administrativa e o enfraquecimento do Parlamento
A reflexão sobre a reforma administrativa vai para além do sim ou do não. O ponto central de qualquer análise diz respeito a que tipo de reforma administrativa se pretende efetivar e quais seus efeitos sobre a organização do Estado de direito. A Proposta de Emenda Constitucional nº 32/2020, em sua apressada tramitação, caminha não para a melhoria ou otimização do serviço público, mas, sim, envereda no enfraquecimento das bases do Estado de Direito. E um dos principais atingidos com essa reforma, por ironia, é o próprio Parlamento brasileiro, o próprio Poder Legislativo.
A efetiva separação de poderes e a prominência do Poder Legislativo somente foram alcançadas na medida em que este último constituiu um quadro de servidores públicos e instituições que estivesse jungido às normas legais. Há uma ligação direta entre o enfraquecimento do Poder Legislativo e a vulnerabilidade de normas institucionais que garantam proteção no exercício das atividades públicas. Um dos períodos de maior brutalidade ditatorial no Brasil, com o fechamento do Congresso Nacional, ocorreu no Estado Novo. Aqui, se destacam as Constituições de 1934 e 1937, que vieram a conviver com um Parlamento segregado, de figurativo a inexistente.
A Constituição de 1934 dispunha em seu artigo 169 que "os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa". O artigo contava ainda com um parágrafo único a dizer que "os funcionários que contarem menos de dez anos de serviço efetivo não poderão ser destituídos dos seus cargos, senão por justa causa ou motivo de interesse público". O Poder Legislativo afastara de si a decisão de fixar bases sólidas e critérios de garantia contra o arbítrio. Ao invés de estarem a olhar a lei feita pelos parlamentares, a dinâmica do medo levava os olhares dos servidores para a vontade do Executivo.
Em face da instabilidade, a moldar o sentido de interesse público pela conveniência do momento, tal qual cera de vela, o Executivo tudo poderia. Os servidores deixariam de olhar o comando do Legislativo para afetar-se ao comando de cada instante. Quase 90 anos se passaram da Constituição de 1934. Entretanto, a PEC 32/20 repete, com teor quase saudosista, a base normativa de 1934, que enfraquecera o Parlamento. A PEC faz a mesma diferenciação entre servidores com e sem concurso pleno. Se a norma de 1934 falava em interesse público, a PEC atual nem a isso se refere, contenta-se com o vago "desempenho satisfatório".
A PEC dita expressamente que os "cargos de liderança" serão definidos pelo próprio Executivo. O Legislativo está excluído de fixar critérios para aqueles que irão cumprir as leis do Parlamento. A esses cargos caberão atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. Em outros termos, exclui-se do Legislativo o mínimo de deliberação sobre quem irá institucionalizar os comandos legais elaborados por deputados e senadores. A contradição é extrema. O Senado poderá perquirir, em audiência pública, os indicados para ministro do Supremo Tribunal Federal, mas não saberá sequer os critérios para os incógnitos cargos de liderança.
As similaridades entre a PEC 32/20 e a lógica da Constituição de 1937, chamada de Polaca, também perseveram. O artigo 157 da Constituição Polaca previa que "poderá ser posto em disponibilidade, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, desde que não caiba no caso a pena de exoneração, o funcionário civil que estiver no gozo das garantias de estabilidade, se, a juízo de uma comissão disciplinar nomeada pelo ministro ou chefe de serviço, o seu afastamento do exercício for considerado de conveniência ou de interesse público". Portanto, aquele servidor público que insistisse em cumprir as leis, em seguir as normas fixadas pelo Parlamento, poderia, por uma comissão disciplinar, ser afastado por conveniência ou segundo um duvidoso interesse público.
A PEC abraça a mesma base que levou ao silenciamento do Parlamento brasileiro na década de 30. Até mesmo o termo "comissão" foi mantido, com o intento de verificar o suposto desempenho. Observa-se que em momento algum o texto fala de verificação de cumprimento de deveres legais, mas, sim, se refere a um dito desempenho, a um agradar alheio, teor contraditório para com o Estado de Direito. A reforma administrativa construída não se afigura como fomentadora da eficiência ou da diligência, não se determina segurança de gestão ou de proteção para que os servidores públicos possam cumprir seu dever para com a Lei e a sociedade.
O palpitar da vulnerabilidade do Poder Legislativo na década de 1930 não pode ser esquecido. Não se verifica um só ponto de reforço à legalidade ou à garantia para que carreiras de Estado, sejam elas as carreiras de fiscalização e exercício de poder regulatório, as carreiras diplomáticas, as carreiras policiais ou as carreiras da advocacia pública, possam desempenhar, em plenitude, seu dever legal e constitucional em cumprimento para com as balizas estabelecidas pelo Poder Legislativo.
A condução da reforma administrativa pelas premissas e bases em que caminha reduzirá o lastro sistêmico que conduz à concretização das normas feitas pelo parlamento. O Poder Legislativo se tornará um maestro diante de uma orquestra em que os músicos estão com os braços atados, amarrados, e cujo olhar não mira as partituras, mas, sim, o ímpeto de vontade da liderança do momento, que sequer presta contas ao maestro. Portanto, nessa reforma não se caminha para o futuro, mas, sim, para o passado.
Marcelo Kokke* é pós-doutor em Direito Público-Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), mestre e doutor em Direito pela PUC-Rio, especialista em Processo Constitucional, procurador federal da Advocacia-Geral da União, professor da Faculdade Dom Helder Câmara, professor de Pós-graduação da PUC-MG e professor do Uni-BH.
Fonte: Revista Consultor Jurídico