O tema reforma tributária se mantém constante no cenário econômico-político brasileiro sendo ingrediente adicional, neste momento, a eleição presidencial que se avizinha, assim como a renovação do Poder Legislativo, no nível federal.
A última e real reforma tributária ocorrida no País foi introduzida pela Emenda nº 18/65, feita ao amparo da Constituição Federal de 1946. Nos dias de hoje, grande parte das inovações por ela introduzidas ainda remanesce no que tange à riqueza tributável gerada pela atividade empresarial. Assim, a sua Seção IV descreve o que denomina Impostos sobre a Produção e a Circulação, representados pelo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), tributo cobrado pela União, não cumulativo e seletivo em função da essencialidade do bem, o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICM), também não cumulativo, e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), de natureza cumulativa.
A Constituição de 1988 incorporou esses mesmos impostos sobre a produção, apenas alterando o campo de incidência do ICM para ICMS, de vez que passou a onerar prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, antes de competência federal. Além disso, a Constituição de 1988 manteve outros tributos que, de forma direta ou indireta, podem onerar a atividade empresarial como é o caso dos impostos de importação e sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários. No que tange à riqueza acrescida pela atividade empresarial, segue incidindo o Imposto sobre a Renda que, neste ano, contempla um século. Entretanto, a Constituição de 1988 outorgou à União competência para instituir contribuições sociais, voltadas à seguridade social, além de contribuições de intervenção no domínio econômico com o fito de atender particularidades de certos segmentos da economia.
A edição da Constituição de 1988 e o ambiente de debate que ela gerou certamente que convergiam para que se efetivassem alterações profundas no sistema tributário, que já se mostrava complexo e, muitas vezes, sufocante para muitos setores da economia, discutindo-se, à época, a necessidade de uma reforma tributária visto que o modelo trazido pela Emenda n.18/65 já se mostrava ultrapassado. Contudo, em matéria tributária, além das contribuições sociais que se mostraram como um novo e eficiente instrumento de arrecadação para a União, nada mais ocorreu, remanescendo o antigo conjunto de impostos, ancorados em premissas muitas vezes ultrapassadas, cujo único viés é prover de recursos os cofres públicos. Com isso, as antigas falhas, todas já conhecidas, e as dificuldades burocráticas voltadas ao cumprimento das regras do sistema, se perpetuaram.
Por essas razões e por outras que adiante se comentam decorrentes das mudanças sociais, econômicas e de expectativas operadas no mundo, o tema da reforma tributária se tornou mais relevane do que no passado. Já comentamos neste e em outros espaços quer sobre a necessária simplificação do sistema, quer sobre mandatórias revisões de normas ordinárias visto que a reforma tributária constitucional, desde a década de 1990 do século passado não se move, a despeito de inúmeras tentativas, uma vez que os vários entes tributantes não chegam a um consenso e temem, acima de tudo, a perda de arrecadação para cumprirem as tarefas que a Lei Maior lhes delegou.
Nesse debate que antecede a Constituição de 1988, parece-nos oportuno examinar não só o que sociedade, contribuintes e Fisco vêm reivindicando, localmente, como internacionalmente, em matéria de tributação e arrecadação, considerando as necessidades que hoje emergem. O que se vem observando, de forma geral, é uma busca pela tributação consciente, tanto do lado do Poder Público quanto do lado do contribuinte. Estudando as vias de que dispomos e sem abandonar a nossa percepção de que a reforma no nível da lei ordinária será muito mais eficiente, no Brasil, parece-nos pertinente indagar se o movimento denominado ESG/Tributação pode nos ajudar.
Apenas para contextualizar, em fins da década de 1990 uma série de escândalos abalou o mundo corporativo e, com isso, os chamados stakeholders, os diretamente interessados na vida das empresas e no seu sucesso, representados por investidores, empregados, Governo e a sociedade, em geral, começaram a preocupar-se com o fruto da relação das empresas com o mercado e a sociedade. Nessas condições, foram introduzidas regras voltadas à sua gestão, tarefa desenvolvida, em geral, por administradores que não revestem a condição de sócios. As regras de governança corporativa, ou conjunto de estruturas e processos que dirigem e controlam as empresas, tornaram-se de obrigatória observância por todas as entidades que buscam por credibilidade no mercado.
Na atualidade, entretanto, não basta que as empresas observem regras de governança corporativa, que cumpram e façam cumprir a lei, é necessário que também demonstrem que exercitam boas práticas ambientais e sociais, além de manterem governança, itens correspondentes à sigla inglesa ESG (environmental, social and governance), como é conhecida no mundo. Tais exigências nascem a partir de provocação de investidores e entidades interessados em verificar os impactos que a empresa, como atividade produtiva, causa ou pode vir a causar no meio ambiente, na sociedade e na própria governança corporativa. Quem investe seus recursos busca a certeza de que, no futuro, não arcará com o custo de ter se omitido na preservação do mundo e da sociedade, no desenvolvimento de seus negócios e na sua sustentabilidade.
Os critérios ESG, a despeito de serem discutidos no exterior desde 2004[1] com o objetivo de introduzir princípios de investimento responsável, só mais recentemente chegaram ao Brasil e para os stakeholders das empresas eles são índice de solidez, melhor reputação e, também, maior resistência em meio às incertezas. Os critérios ESG estão relacionados com os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estratégia dos negócios que reúne desafios e vulnerabilidades das entidades.
As empresas que adotam boas práticas de ESG integram o grupo de companhias que fazem parte do ISE, Índice de Sustentabilidade Empresarial da Bolsa de Valores do Brasil (B3). A estratégia ESG inclui transparência nos negócios, abrangendo relatórios, de tal sorte a ofertar aos stakeholders dados essenciais na tomada de decisões. Os Conselhos de Administração e os comitês que os assessoram devem estar preparados para a adoção de tais práticas sob pena de serem alijados do ambiente social e de negócios.
Denomina-se ESG/Tributação ou TAX/ESG a especialização ou subdivisão do tema geral ESG que trata dos impactos sociais, ambientais e de governança das empresas a partir de suas práticas, políticas e estratégias tributárias. Assim, é possível desdobrar a sigla ESG, para fins tributários, nos seguintes principais aspectos: (i) função ambiental voltada a bens e atividades que não degradem o mundo; (ii) função social voltada à concessão de benefícios a empregados e à sociedade, ao pagamento de tributos e contribuições e à ética tributária e (iii) função de governança voltada ao controle e acompanhamento de estratégias tributárias.
Os relatórios de transparência fiscal, voltados à sustentabilidade, inserem-se como parte da governança, contemplando os fatos tributários e correspondentes ações. Os padrões ESG exigem que tais relatórios atendam a regras estabelecidas por agências credenciadas, como é o caso da Global Reporting Initiative, GRI, dentre outras, organização internacional de padrões independentes que ajuda empresas, governos e outras organizações a entenderem e comunicarem seus impactos em questões como mudanças climáticas, direitos humanos e corrupção. A Global Sustainability Standards Board (GSSB), desenvolveu os primeiros padrões globais para relatórios de sustentabilidade, de acesso livre, considerados como um bem público gratuito[2].
No que tange ao Poder Público, cobra-se a criação de políticas tributárias voltadas à preservação ambiental, à criação de tributos e incentivos orientados à proteção ambiental. As políticas sociais dos governos devem estar alinhadas com a criação de empregos e o atendimento social das populações, de forma integral, saúde, moradia e educação. Em alguns países, objetivamente, observa-se a aplicação desses conceitos em processos que sugerem reformas tributárias, os quais direcionam tributos a tais finalidades.
Assim no México, em 2012, o chamado Grupo de los Seis, composto pelos mais renomados tributaristas desse país, publicou, com apoio de entidades nacionais, proposta de reforma fiscal[3] que conta com a previsão de estímulos à criação de uma cultura de civismo fiscal, resgate do Estado de Direito e do respeito às leis (Proposta de Solução n. 12) e no que tange ao Imposto sobre a Renda, especificamente, (Capítulo III), a criação de incentivos à realocação de empresas que se encontram ou pretendem se instalar em áreas metropolitanas, ditas restringidas, como política de combate à poluição, o que também permite a geração de riqueza em outras áreas do país.
A Espanha, mais recentemente, desenvolveu projeto de reforma tributária contido no Libro Blanco sobre la Reforma Tributaria, elaborada por professores e especialistas,[4] que inclui capítulo sobre a fiscalidade e o meio ambiente, em que se propõe (Proposta 12) a criação de tributos voltados ao meio ambiente, bem como a entrega do fruto de sua arrecadação e correspondente gestão a entidades vinculadas a estes propósitos, além de muitas outras sugestões de interesse.
No que tange ao aspecto social, as empresas, além de pagarem salários em contrapartida do trabalho desenvolvido por seus empregados, também assumem grande parte de tarefas de incumbência do Estado, ou seja, saúde e educação dos funcionários, adequada alimentação, custeio/fornecimento de transporte entre a casa do funcionário e o local de trabalho, educação da família do obreiro, e muitas outras benesses. Também se pode afirmar que as empresas vão muito além de seus colaboradores, estendendo tais benefícios, muitas vezes, às comunidades onde atuam, como é o caso de conceder acesso, para terceiros, a escolas e hospitais originalmente criados para seus funcionários, instalar serviço de água tratada e orientar na adoção de padrões de higiene na coleta de resíduos, no cultivo da terra e muitos outros. Incentivar e premiar a manutenção de tais comportamentos, do ponto de visa tributário, é tarefa do Poder Público, visto que ele não consegue bem atender a todos os cidadãos.
Por fim, a governança em matéria tributária, como já se comentou, inclui o cumprimento de todas as normas, desde que pertinentes à atividade da entidade, bem como exige que os stakeholders assim também o façam. Em termos de ESG/Tributação, a governança inclui Relatórios de Transparência Fiscal que deixam evidente o comportamento da entidade. Hoje, no Brasil, esse relatório é de elaboração facultativa e espontânea pelas entidades que os confeccionam. Os relatórios de transparência fiscal que vêm sendo divulgados de forma espontânea, e ainda não são muitos, além de indicarem compromisso com o futuro do mundo e daqueles que os cercam, também divulgam as somas arrecadadas a título de tributos, tanto os próprios decorrentes das operações, como aqueles que têm a obrigação legal de reter e fazer chegar aos cofres públicos, na condição de fonte arrecadadora. Por fim, são divulgados os fatos relativos a planejamentos tributários e o tratamento a eles dado, do ponto de vista da lei, além da alíquota efetiva que onera a entidade.
Dados esses fatos e tendo em vista a construção de um mundo melhor, parece-nos de todo muito útil que se promova um debate sobre a reforma tributária considerando a abrangência do ESG/Tributação, pois certamente esse exercício gerará oportunidades de atualização do nosso sistema tributário, afastando-se tributos anacrônicos que não evidenciam riqueza a ser tributada, como é o caso daqueles que se valem da receita como base de cálculo, bem como aqueles que não reconhecem a não cumulatividade, tributando sucessivas cadeias econômicas, sem respeito ao ônus que causam aos contribuintes e aos consumidores e, mais, aqueles que oneram a aquisição de conhecimento ou o desenvolvimento da tecnologia.
É certo que tributação consciente exige o compromisso do contribuinte de colaborar com o bem comum, mas exige do Fisco que seja afastada a sanha arrecadatória. Divulgar relatórios de transparência fiscal não pode gerar para os contribuintes o temor e a insegurança de que as autoridades venham a visitá-lo sob o argumento de que recolheu tributo a menor ou desenvolveu operação de planejamento à margem da lei, apenas por envolver tributos. A filosofia do ESG/Tributação vai muito além disso, exige uma mudança comportamental de todos os atores na cadeia da tributação, portanto, uma consciência de renovação. Participar dessa mudança é dever de todos, sociedade, contribuintes e Fisco.
Os Conselhos de Administração e Comitês que os assessoram devem colocar o ESG e, em especial, o ESG/Tributação, em suas agendas, pois a demora em assim fazê-lo pode levar à perda de credibilidade, além de perdas financeiras importantes. Há aspectos específicos, para bem atender às demandas do ESG, que desnudam o sistema tributário brasileiro, evidenciando seu anacronismo e armadilhas.
Uma reforma tributária calcada na segurança jurídica e valendo-se do viés ESG/Tributação permitirá rever tudo isso. Com propostas desse tipo poderemos modificar, lentamente, o tradicional roteiro dos incentivos vinculados à produção, voltando-nos à valorização do ambiente, das pessoas e do conhecimento.
Por fim, de tudo que observamos até agora, as práticas do ESG/Tributação ainda não parecem ter despertado o interesse e a preocupação dos tributaristas brasileiros, no geral. Nesse caso, é esperar que o ESG/Tributação logo frutifique no País, pois ele poderá orientar nosso futuro tributário.
[1] A origem do termo foi o documento Who Cares Wins, no âmbito de publicação reunindo o Pacto Global e o Banco Mundial, em 2004.
[2]https://www-globalreporting-org.translate.goog/standards/global-sustainability-standards-board/?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-BR&_x_tr_pto=sc
[3] Grupo de los seis, Propuesta de reforma Fiscal, una acción impostergable. 3ª ed.. México, DF: Instituto Mexicano de Contadores Públicos, 2012.