Como é de conhecimento geral, no julgamento do Recurso Extraordinário 601.314/SP, ocorrido em 2016, o STF decidiu que o fisco federal possui a prerrogativa de obter informações financeiras/bancárias dos contribuintes, periodicamente, independente de autorização judicial prévia. Por maioria de votos, foi afastada a alegação de que a Lei estaria violando o sigilo fiscal.
Na mesma assentada, o Supremo realizou o julgamento conjunto das ADIs 2.859, 2.397, 2.386 e 2.390, estendendo a prerrogativa de acesso às tais informações aos estados e Municípios, mas com ressalvas. Segundo o STF, estados e municípios somente podem obter tais informações quando a matéria estiver devidamente regulamentada (legislada) pelos entes federados.
Adicionalmente, foram estabelecidos os seguintes critérios a serem observados pelas legislações dos estados e municípios:
"Assim, a exemplo do que prevê o mencionado decreto federal, a regulamentação da matéria no âmbito estadual e municipal deverá, obrigatoriamente, conter as seguintes garantias:
1) pertinência temática entre as informações bancárias requeridas na forma do artigo 6º da LC nº 105/01 e o tributo objeto de cobrança no processo administrativo instaurado;
2) prévia notificação do contribuinte quanto à instauração do processo (leia-se, o contribuinte deverá ser notificado da existência do processo administrativo previamente à requisição das informações sobre sua movimentação financeira) e relativamente a todos os demais atos;
3) submissão do pedido de acesso a um superior hierárquico do agente fiscal requerente;
4) existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso, de modo que torne possível identificar as pessoas que tiverem acesso aos dados sigilosos, inclusive para efeito de responsabilização na hipótese de abusos;
5) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios;
6) amplo acesso do contribuinte aos autos, garantindo-lhe a extração de cópias de quaisquer documentos e decisões, de maneira a permitir que possa exercer a todo tempo o controle jurisdicional dos atos da administração, segundo atualmente dispõe a Lei 9.784/1999".
Veja-se que, da forma como foi definido pelo Supremo, deve existir pertinência entre as informações requeridas e o tributo em análise, o contribuinte deve ser previamente notificado sobre o processo administrativo a ser instaurado para obtenção de suas movimentações financeiras, o acesso do fiscal deve ser autorizado por uma autoridade superior e, resumidamente, tal acesso deve ser identificável.
Sobre estes requisitos, pode-se afirmar que a principal diferença no tratamento dispensado pelo STF ao fisco federal, de um lado, e de outro lado, aos demais fiscos (estaduais e municipais), se refere à forma de acesso às informações bancárias.
Enquanto à Receita Federal foi reconhecido o direito de acesso sistemático/automático às informações financeiras dos contribuintes, aos demais entes da federação (Receitas Estaduais e Municipais) foi deferido um acesso mais restrito, a ser obtido mediante requisição específica. O debate dos ministros explicita este ponto:
"O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (RELATOR):
Senhor Presidente, como primeiro passo, antes de chegarmos ao artigo 6º e enfrentar o debate travado agora, eu gostaria de relembrar o artigo 5º; é fundamental relembrar o artigo 5º, porque a automaticidade da informação é dada pela lei complementar apenas ao Fisco Federal. Então, estamos todos esclarecidos em relação a isso:
(...)
Então, essa automaticidade não entra no âmbito dos demais entes da Federação: estados, municípios e Distrito Federal não têm esse direito de receber o pacote completo.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO — O Everardo chama de acesso sistêmico.
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (RELATOR):
É, acesso sistêmico.
Pois bem, já o artigo 6º, que vai se referir, além de à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, diz o seguinte: para essas autoridades terem acesso...
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO — Incidental.
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (RELATOR):
... incidental, tem de ter um processo aberto previamente, ou seja, elas não vão ter o acesso sistêmico; elas já têm que ter identificado, então, alguma situação e aberto o processo, e processo pressupõe a intimação do interessado para sua formação".
É possível fixar, assim, a seguinte premissa: o Fisco Federal tem acesso automático aos dados, mas o Fisco estadual, não.
Para o fisco estadual, a informação deve ser requerida às instituições competentes (o acesso não é direto). E, previamente à requisição, deve ser aberto um processo administrativo, com ciência imediata ao contribuinte, para que este possa, inclusive, se voltar contra o pedido de informações financeiras, conforme se extrai do debate acima.
No âmbito do estado de Minas Gerais, contudo, o legislador desvirtuou completamente esta prerrogativa do fisco, no que se refere às informações financeiras relacionadas às transações via cartões de débito/crédito (e demais instrumentos congêneres de pagamento).
A Lei 6.763/75 atribuiu às empresas que operam cartões a responsabilidade de informar o fisco, periodicamente, de forma sistemática/automática, os valores repassados aos usuários. O artigo 13-A do Anexo VII do Regulamento do ICMS, por sua vez, detalha a periodicidade da obrigação das administradoras [1].
Tem-se, então, na contramão da decisão do STF, o acesso sistêmico, e não incidental, do fisco mineiro às movimentações financeiras dos contribuintes realizadas por intermédio das empresas que operam cartões de crédito/débito. Até o último dia do mês seguinte às operações do contribuinte, o fisco terá acesso irrestrito a todas as transações realizadas com cartões.
Dessa forma, inverteu-se o comando estabelecido pelo STF como condição de validade da requisição dos dados bancários: o fisco recebe as informações das administradoras, para em seguida intimar o contribuinte a respeito. De acordo com o Supremo, porém, o fisco deve instaurar um processo administrativo, intimar o contribuinte, e só aí é que pode solicitar as informações financeiras. Não há outro procedimento possível, conforme dispôs claramente a decisão.
Se o fisco, ao intimar o contribuinte, já está de posse dos valores declarados pelas empresas administradoras de cartões, há nítido descumprimento da regra procedimental fixada pelo STF, o que macula o processo fiscalizatório.
Em caso análogo ao presente, em que o fisco estadual também descumpriu este pressuposto para a requisição válida das informações às operadoras de cartões, o STF mantive acórdão do TJSP que invalidou uma autuação de ICMS:
"No presente caso, não se verificam preenchidos os requisitos necessários à validade da quebra do sigilo, tendo em vista que, os dados foram obtidos das operadoras de cartões de crédito sem a prévia instauração de processo administrativo ou judicial.
Ao contrário, tais dados serviram de elemento para fundamentar o levantamento fiscal e a lavratura do auto de infração por parte do ente público, sob o entendimento de existência de dívida, ante a existência de diferença entre o movimento tributável e o valor constante nas transações com cartão de crédito" (RE 1.355.204/SP, julgado em 16/11/2021).
Nota-se, portanto, que o procedimento fiscalizatório em análise contraria diretamente as regras objetivas ditadas pelo STF, o que assegura aos contribuintes o questionamento do ato administrativo perante o Judiciário.
[1] "Artigo 13-A. As administradoras de cartões, instituidoras de arranjos de pagamento, instituições facilitadoras de pagamento, instituições de pagamento, inclusive as credenciadoras de estabelecimentos comerciais para a aceitação de cartões e demais empresas similares, e os intermediadores de serviços e de negócios entregarão o arquivo eletrônico de que trata o artigo 10-A desta parte até o último dia útil de cada mês, relativamente às operações e prestações realizadas no mês imediatamente anterior".