Opinião
Os modelos de Administração Pública e a reforma administrativa
O objetivo deste artigo é tentar contextualizar a reforma administrativa do governo Bolsonaro à luz da evolução da Administração Pública ao longo do tempo, com seus avanços e retrocessos. A Administração Pública começou como um modelo patrimonialista, evoluiu para o modelo burocrático, experimentou o modelo gerencial e chegou aos modelos de governança pública e de governança da era digital, que estão em voga no mundo na atualidade. A reforma administrativa, de que trata a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 32/2020, não se enquadra em nenhum desses modelos, embora pretenda incorporar elementos da governança digital.
Para situar o debate da reforma administrativa no contexto da Administração Pública, que está em sua quarta geração ou no seu quarto modelo, é fundamental conhecer os fundamentos, critérios e características de cada um desses modelos, a começar do patrimonialista. Esses modelos ou fases da Administração Pública coexistiram em algum momento de sua implementação, dependendo do país, e, no Brasil, ainda coexistem.
O modelo patrimonialista, que vigorou na Europa do século 15 ao 18, tinha como fundamento a crença na tradição, nos costumes da época, ditado pelos monarcas, e que foi praticado no Brasil nos períodos do Império e da República Velha. Trata-se de um modelo marcado por castas, laços de sangue, nepotismo, clientelismo, em que o monarca e os integrantes do estamento que geriam o Estado dispunham, em caráter pessoal e como propriedade, das rendas, dos cargos e dos bens públicos. Foi um modelo marcado pela ineficiência, má gestão, corrupção e total ausência de mecanismos de prestação de contas, além de elitista e autoritário. Suas principais características eram o poder despótico dos governantes, o caráter hereditário do poder, a ausência de separação entre governo e religião, assim como entre o público e o privado, além da existência de lealdade política entre o Estado e os grupos privados mais fortes. Foi sucedido pelo modelo burocrático.
O modelo burocrático, descrito como "tipo ideal" por Max Weber, por sua vez, desenvolveu-se ao longo da história, como exemplifica a China, sob o confucionismo, e consolidou-se no mundo, a partir das experiências de países como França, Inglaterra e Alemanha, da segunda metade do século 19 até o final dos anos de 1970. Implementado tardiamente, e de forma incompleta, em países como o Brasil, onde ainda vigora precariamente, tem como fundamento a crença na razão, na prevalência do racional-legal. Esse modelo tenta romper com as práticas do modelo anterior, adotando a lei como expressão da vontade coletiva e pública, eliminando a supremacia da vontade do governante sobre a lei e separando os interesses pessoais do detentor do poder e do interesse público, especialmente no manuseio dos arranjos institucionais, de regras legais e do orçamento público para satisfazer necessidades humanas, estruturar as interações sociais e organizar os processos de tomada de decisão.
Trata-se de um modelo de Administração Pública com fundamento nos princípios do formalismo, da impessoalidade e do profissionalismo, na qual prevalecem os controles formais dos processos de decisão, a hierarquia funcional rigorosa, a previsão de rotinas e procedimentos. Os servidores públicos são recrutados por concurso público, de forma impessoal, valorizando o conhecimento aferido em provas, e têm estabilidade no emprego, como forma de assegurar a impessoalidade e a continuidade na prestação de serviços públicos.
Entretanto, com a crise do Estado nas dimensões econômica, social e administrativa, o modelo burocrático passou a ser questionado, sendo associado à rigidez administrativa, excesso de poder para os funcionários, desperdício de recursos e autoritarismo. A crise econômica abalou a arrecadação de tributos, com reflexos sobre as finanças públicas. A crise social, decorrente de fatores como envelhecimento da população, de um lado, pressionou pela ampliação do gasto público, e, de outro, com a urbanização, o aumento da escolaridade, assim como da ampliação da esfera pública não estatal, pressionou pela revisão do papel do Estado. E a crise administrativa, especialmente por seus problemas de desempenho, de má alocação de recursos e de pouca preocupação com custos, além das transformações tecnológicas e do enfraquecimento dos governos nacionais pela globalização, pressionou por mais eficiência, eficácia, efetividade e equidade com menores custos.
O modelo gerencial, ou a Nova Gestão Pública (NPG), que teve em países como Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Holanda os seus precursores, a partir do final da década de 1970, e que sucede a Administração Pública burocrática, é produto desse ambiente. Via de regra, a NPG é associada ao modelo neoliberal, e tem como um de seus componentes a privatização de empresas estatais, e a transferência da execução dos serviços públicos a entidades privadas, com maior ou menor grau de dependência do Estado. Mas ele também se relaciona à disputa por mercados globais, que exigem redução de custos tributários, trabalhistas e previdenciários, e, em consequência, redução do Estado de Bem-Estar Social. Esse modelo, em sua versão pura, resultou da ofensiva neoliberal desencadeada por Margaret Thatcher no Reino Unido, no final de 1979, e Ronald Reagan, no início dos anos de 1980, nos Estados Unidos, e teve seu auge na década de 1990, com perda de sua relevância a partir do início do século 21.
A Nova Gestão Pública, considerada uma mudança de paradigma na Administração Pública, busca a estruturação e a gestão da máquina pública com base em valores de eficiência, eficácia e competitividade. Ou, dizendo de outro modo, representa a primazia da capacidade gerencial sobre as decisões políticas. Essa fase da Administração Pública, com foco na liderança empreendedora, na gestão de recursos e na prestação de serviços em parcerias ou sob a direção do setor privado, teve como principais características: a) a desregulamentação; b) a flexibilização das formas de contratação de servidores e de insumos para a produção de bens públicos; c) a descentralização ou delegação de autoridades; d) a racionalização orçamentária; e) a avaliação de desempenho, supostamente para obter mais eficiência financeira e orientação para resultados; e f) a coordenação por meio de mecanismos de mercado, e de relações contratuais ou quase-contratuais, em lugar da hierarquia.
Para os ideólogos desse modelo, a gestão pública deve ter uma função realizadora, pouco importando quem realiza: o setor público ou o setor privado. Sua lógica, além do mais, parte do pressuposto da superioridade do setor privado sobre o setor público na prestação de serviços.
Esse modelo, que se baseia na lógica de mercado, teve vida curta. Ele não se sustentou na Administração Pública, porque adota a lógica da relação cliente-consumidor, uma relação própria para o setor privado, mas inadequada para o setor público. A relação cliente-consumidor se pauta pela demanda, numa transação de natureza mercantil ou comercial de troca, enquanto a relação cidadã se orienta pela necessidade. A lógica do setor público, por sua vez, é a lógica da cidadania, que, além da eficiência, também pressupõe equidade e justiça.
Com o fracasso do modelo gerencial ou da Nova Gestão Pública, entrou em cena, ainda de modo emergente, no início do século 21, a chamada Nova Governança Pública, que combina aspectos da Administração tradicional e da Administração gerencial.
Trata-se de um modelo que visa a fortalecer a coordenação das políticas públicas, e funciona por meio de mecanismo de hierarquia (governo), mecanismos autorregulados (mercado) e mecanismos horizontais de cooperação (comunidade, sociedade, redes etc.). Ou seja, a governança inclui três setores: o setor público (atores e instituições estatais), o setor privado (família e empresas) e a sociedade civil ou terceiro setor (ONGs). E se funda na teoria das redes e nos múltiplos atores interdependentes que podem contribuir para a prestação de serviços públicos e influenciar o processo de políticas públicas.
Do ponto de vista teórico, segundo os administrativistas Tony Bovaird e Elke Loffler no texto de 2003 "Avaliando a qualidade da governança pública: indicadores, modelos e metodologias" [1], a governança pública tem como fundamento a responsabilidade, a equidade, a participação e a transparência no governo.
Para eles, as principais características da Nova Governança Pública são: 1) engajamento do cidadão; 2) transparência; 3) prestação de contas; 4) agenda de igualdade e inclusão social (gênero, etnia, idade, religião etc.); 5) comportamento ético e honesto; 6) equidade (procedimentos justos e devido processo);7) capacidade de competir em um ambiente global; 8) capacidade de trabalhar de forma eficaz em parceria; 9) sustentabilidade; e 10) respeito pelo Estado de Direito.
Ela coexiste com a Governança da Era Digital, que enfatiza o uso de tecnologias de informação e comunicação como instrumento de coordenação vertical e horizontal, reintegrando o que a NGP desintegrou através das medidas de descentralização, e simplificando as relações entre cidadão e Estado. Visa, assim, a reduzir a presença física do Estado, substituído pelos canais eletrônicos (digitalização), e promover uma reengenharia de processos que elimine etapas, repetições e duplicações desnecessárias.
A ideia da boa governança, assim, requer um rigoroso processo de avaliação, no qual não se mede apenas a qualidade do serviço prestado, mas também a melhoria da qualidade de vida e dos processos de governança. Ela implica, simultaneamente, em maior grau de responsabilização, de transparência, acesso à informação, integridade pública, confiança, eficiência e liderança.
A reforma administrativa do governo Bolsonaro, como já mencionado, não se enquadra em nenhum desses modelos, pois seu objetivo não é a construção de mecanismo de gestão, mas de desmonte dos serviços e da máquina pública.
A PEC 32, em sua versão original, trazia uma mera visão de recursos humanos sob a lógica privatista e patrimonialista, com fisiologismo na indicação de cargos de livre provimento e precarização das relações de trabalho, com objetivos meramente fiscais.
Nela não havia nenhum compromisso com meritocracia ou com melhoria da qualidade do serviço público. Pelo contrário, significava a desorganização da Administração Pública, o desmonte dos serviços públicos e a precarização dos direitos dos servidores.
Seu objetivo, portanto, era transferir para o mercado, diretamente ou mediante vouchers, na perspectiva do "Estado mínimo comprador", presente na NGP, a prestação de serviços públicos, assim como a entrega aos partidos da base do governo dos cargos de livre provimento atualmente ocupados por servidores de carreira, inclusive em área gerenciais, técnicas e estratégicas.
O substitutivo aprovado na Comissão Especial, em sua sétima versão, apesar de ter retirado muitos dos retrocessos da proposta original, ainda continua imprestável, pois aprofunda a desorganização da Administração Pública. Ele coloca em risco três sentidos fundamentais da máquina pública: o de continuidade, o de profissionalização e o de especialização, já que o contrato temporário e a terceirização serão as portas de entrada e cerne do serviço público. Para atenuar o viés antisservidor, ele incorporou alguns elementos da NGP e da Governança da Era Digital, como a previsão de que será obrigatória a utilização de plataforma eletrônica de serviços públicos, na forma da lei, para permitir a automação de procedimentos executados pelos órgãos e entidades integrantes da Administração Pública direta e indireta, o acesso dos cidadãos aos serviços que lhes sejam prestados e à avaliação da respectiva qualidade e o reforço e o estímulo à transparência das informações sobre a gestão de recursos públicos. Prevê também que os órgãos e as entidades da Administração Pública direta e indireta implementarão estrutura, processos e ações voltadas à boa governança pública, com a finalidade de avaliar, direcionar e monitorar a gestão dos recursos públicos, a condução de políticas públicas e a prestação de serviços de interesse da coletividade.
No entanto, em sua vertente fiscalista e privatizante, o texto quebra a estabilidade do servidor, amplia a possiblidade de contratação temporária, prevê a redução de jornada e de salário, e amplia a terceirização e a transferência de responsabilidades ao setor privado pela via de "instrumentos de cooperação’, inclusive para permitir a contratação de pessoal para a prestação de serviços públicos, como já ocorre com o malfadado modelo das "organizações sociais" introduzido em 1997 pela reforma do governo FHC.
Os servidores têm razão: a reforma foi pensada para vigiar e punir os servidores, e não para melhorar a qualidade do serviço público ou a meritocracia na gestão pública. Por isso, ela não merece ser aprovada. Ela é um anacronismo, uma colcha de retalhos de más ideias e princípios equivocados, que já se mostraram inadequados a um projeto de desenvolvimento inclusivo e incompatíveis com o papel do Estado pós-Covid-19.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV-DF, sócio-diretor das empresas Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais e Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas.
Luiz Alberto dos Santos é doutor em Ciência Sociais, mestre em Administração, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, advogado, consultor Legislativo do Senado Federal, professor Colaborador da EBAPE/FGV, sócio da “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.
Fonte: ConJur