É de conhecimento geral que o sistema tributário brasileiro é complexo, ineficiente e apresenta inúmeras falhas. Não raramente lemos notícias que retratam a paradigmática frase de que vivemos em um "manicômio tributário". Manicômio é uma palavra forte, de fato, mas infelizmente retrata, na força de sua expressão, que o Brasil possui um dos sistemas tributários mais complexos do mundo.
No Complexity Tax Index[1], um índice compilado por duas universidades da Alemanha que evidencia a complexidade da carga tributária pelo mundo, o Brasil ocupa o primeiro lugar entre cem países analisados. Ainda segundo o Banco Mundial, uma empresa instalada no Brasil gasta, em média, 1.500 horas (62 dias ao ano) para estar em conformidade com o Fisco[2].
Na tentativa de mudar o sistema tributário, que há muito tempo tornou-se insustentável, diversas frentes de atuação da sociedade e do Congresso, tentam buscar aprovação de uma reforma que revolucione nosso sistema.
Apesar de existirem diversas reformas em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado, o presente texto retrata e explica a proposta que está sendo mais discutida e que mais recebe apoio no Congresso, na sociedade e no setor produtivo.
Trata-se da PEC 110/2019, que foi idealizada, há algum tempo, pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly, um parlamentar de larga experiência na seara fiscal. A proposta tramitava na Câmara dos Deputados, onde passou por inúmeras reuniões, debates e palestras, mas posteriormente foi apresentada no Senado, pelo senador Davi Alcolumbre e subscrita por mais de 65 senadores. Atualmente, a PEC 110/2019 é relatada pelo senador Roberto Rocha.
Um dos maiores êxitos que se traz com a reforma tributária, sem dúvidas, é a unificação e simplificação da tributação sobre o consumo, que hoje apresenta uma grande distorção. É sabido que a carga tributária sobre o consumo é elevadíssima e nas últimas décadas só piorou, uma vez que a criação de contribuições complexas acabou onerando demasiadamente o contribuinte.
Apesar de reformas pontuais em tributos sobre o patrimônio, a PEC 110/2019 possui foco na alteração dos tributos incidentes sobre o consumo, adotando-se, definitivamente o modelo do Imposto Sobre Valor Agregado (IVA), onde se tributa efetivamente somente o que foi acrescentado (ou agregado) em cada operação, ou seja, pretende-se perquirir a não-cumulatividade plena.
Os principais objetivos da proposta, além da unificação dos tributos sobre o consumo, é de (i) melhorar a eficácia na arrecadação por meio da diminuição da burocracia; (ii) criar um imposto pelo modelo do IVA de competência compartilhada entre estados, DF e municípios intitulado de Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS), que substituirá o ICMS e o ISS; (iii) criar uma contribuição, também espelhada no IVA, de competência da União, intitulada de Contribuição sobre Bens e serviços (CBS) que substituirá o PIS, Cofins e Cofins Importação; (iv) e criar um Imposto Seletivo incidente sobre bens e serviços específicos, de competência da União.
Interessante destacar que o Imposto Sobre Valor Agregado (IVA), trata-se, na verdade de um modelo de tributação e não de uma espécie tributária. Nesse modelo, um único tributo substitui vários outros com o objetivo de facilitar a arrecadação e, assim, diminuir a burocracia.
No Brasil, entretanto, o modelo a ser adotado será o IVA Dual, que compreende dois tributos, cada um com competência distinta, para que se preserve o pacto federativo. Haverá, portanto, um tributo pelo modelo do IVA de competência da União (CBS) e outro de competência dos estados, DF e municípios (IBS).
Antes de tratar especificamente de cada tributo é importante destacar que a PEC 110/2019 sofreu profundas alterações em 16 de março de 2022, após a complementação de voto apresentada pelo senador Roberto Rocha.
Antes da complementação de voto haveria somente um imposto sobre o consumo, o IBS único, de competência dos estados e DF, que abarcaria IPI, IOF, PIS, Cofins, Salário Educação, Cide Combustíveis, ICMS e o ISS. Nesse caso, seria concedido aos municípios a iniciativa na proposição de leis complementares para tratar do imposto. Também estava previsto que o Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) passaria a ser de competência da União, mas com destinação da receita aos municípios.
A partir da complementação de voto do relator a proposta passou a contar com o IVA Dual, ou seja, um tributo de competência dos estados, DF e municípios e outro de competência federal. Manteve-se a previsão do Imposto Seletivo e alterações pontuais no Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
O IBS passa a abarcar somente o ICMS e o ISS com os seguintes princípios a serem observados: (i) prestigiará o princípio do destino, ou seja, o imposto deverá pertencer ao local de destino da operação ou onde é prestado o serviço; (ii) terá uma legislação única aplicável em todo território nacional; (iii) apesar da legislação ser única, cada ente federado terá autonomia para fixar sua própria alíquota, mas observando que essa alíquota deverá ser uniforme para todos os bens e serviços consumidos em seu território; (iv) o imposto será não-cumulativo; (v) não integrará a sua própria base de cálculo, evitando-se o cálculo por dentro; (v) não poderá ser objeto de isenções, incentivos ou benefícios fiscais, com exceção das hipóteses que serão previstas em lei complementar; (vi) será recolhido de forma centralizada.
Na complementação de voto, o relator destacou que lei complementar poderá instituir regimes especiais e favorecidos para dar um tratamento mais benéfico a segmentos relevantes da sociedade. O relatório cita, por exemplo, a tributação mais benéfica para atividades agropecuárias, produtos da cesta básica, de saúde e medicamentos. A complementação de voto também destacou sobre a necessidade um regime diferenciado do IBS para as operações que envolvem serviços financeiros, já que é perceptível a dificuldade de tributar operações remuneradas, na forma de margem, pelo regime padrão de débito e crédito.
A intermediação financeira ficará excluída da base de cálculo da incidência do IBS, uma vez que, segundo o relator, poderia encarecer o crédito. Assim, a tributação desse será ainda definida pela lei complementar, que poderá encontrar a forma mais adequada de tributação desses serviços. O relator destacou que essa tributação diferenciada não significa menor tributação, mas sim a adoção de um regime distinto para apuração do imposto na intermediação financeira.
Por fim, sobre a transição do regime tributário, o ISS e o ICMS serão extintos no início do sétimo ano subsequente ao ano-base (ano em que for aprovada a lei complementar). Já a transição federativa (distribuição de receitas entre os entes) ocorrerá da seguinte maneira: nos primeiros vinte anos a contar do início da redução das alíquotas do ICMS e ISS, a porcentagem da arrecadação do IBS destinada aos entes federados será retida e distribuída proporcionalmente à participação de cada um na receita do ICMS e ISS. Ou seja, durante vinte anos, estados e municípios terão garantida, pelo menos, a sua receita atual de arrecadação corrigida pela inflação.
Após esses 20 anos, ou seja, do vigésimo primeiro ao quadragésimo ano a parcela retida de receita do IBS será progressivamente reduzida, sendo extinta no final do período. Assim, ao final desse período, a receita será distribuída, normalmente, pelos critérios previstos na CF/88.
A Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União, terá as mesmas destinações atuais, ou seja, de financiar a seguridade social e os programas previstos no artigo 239 da CF/88[3], como o seguro-desemprego, abono salarial e os repasses para o Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES). A CBS deverá ter os seguintes princípios: (i) homogeneidade de alíquotas, sendo admitido regimes especiais a ser regulado pela lei ordinária que a instituir; (ii) crédito financeiro (não escritural) sobre as contribuições pagas em todas as aquisições; (iii) incidência somente sobre receitas de operações com bens e serviços; e (iv) alíquota única de 12% aplicável aos diversos setores, com exceção dos serviços financeiros, tributos à alíquota de 5,8%.
A transição da CBS será de forma mais rápida. A extinção da Cofins, Cofins-importação, PIS e PIS-importação ocorrerá logo quando do início da produção dos efeitos da lei ordinária que instituir a CBS.
Já o Imposto Seletivo (IS), que terá caráter extrafiscal e será de competência da União, incidirá sobre a produção, importação ou comercialização de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. O IS substituirá o atual IPI e não poderá incidir sobre as exportações. Ademais, o produto de sua arrecadação será compartilhado com os estados, DF e municípios, de acordo com os mesmos critérios atuais do IPI. Como o imposto será de caráter extrafiscal, terá suas alíquotas definidas por lei ordinária, que poderão ser alteradas pelo Poder Executivo.
Na complementação de voto, o relator destacou que o IS será um valioso instrumento para a política de mitigação das mudanças climáticas. É um tema que, notadamente, tem ganhado destaque no âmbito das políticas públicas e recentemente foi objeto de debate de centenas de nações na COP-26, realizada em Glasgow, na Escócia.
A transição do IS será definida pela lei ordinária que o instituir, mas deverá observar as condições específicas para a extinção do IPI. A PEC 110/2019 não prevê a extinção do IPI, pois certamente será necessário manter sua incidência sobre alguns produtos a fim de viabilizar uma transição suave para as empresas instaladas na Zona Franca de Manaus. Entretanto, a proposta deixa claro que não poderá haver incidência de IPI sobre os produtos também sujeitos à incidência do IS, para que não haja risco de dupla tributação.
A PEC 110/2019 ainda prevê a ampliação do escopo de incidência do IPVA, de forma que alcançará também os veículos aquáticos e aéreos, como lanchas, jatos particulares etc., com exceção para veículos que são usados para transporte público de passageiros, cargas e pesca artesanal. Por fim, o IPTU também sofrerá uma alteração pontual: há a previsão constitucional de que sua base de cálculo seja atualizada, pelo menos, uma vez a cada quatro anos (por lei ou decreto municipal), cujo limite será o valor de mercado do imóvel.
É importante lembrar que a PEC 110/2019 não reduzirá, ao menos em primeiro momento, a carga tributária vigente em nosso sistema. O que se pretende com a reforma é diminuir os custos de conformidade ou compliance tributário, simplificar o sistema em si e reduzir a quantidade de normas e padronizar as alíquotas. O nosso sistema atual, que muitos intitulam de "cipoal de regras tributárias", passará por uma reformulação com a finalidade de deixá-lo mais simples.
Então é possível que, com o decorrer dos anos após a reforma, o custo de produtos e serviços gradativamente tenham preços mais atrativos. Com a diminuição do custo de conformidade e com um sistema menos complexo, o setor produtivo e de prestação de serviços teriam uma despesa significativamente menor para manter gigantesca estrutura especializada em custos de observância tributário.
Ademais, um sistema tributário mais simples e sem distorções possui o condão de atrair maior quantidade de players para o mercado interno, o que propicia concorrência saudável no mercado com a consequente melhoria nos preços de produtos e serviços.
A complexidade do sistema tributário não traz nenhum benefício para um país que almeje ter economia próspera e justa redistribuição de renda. Parece ser evidente que não é pela edição de milhares de normas e pela complexidade que o Estado terá uma arrecadação eficaz e superavitária. Pelo contrário, é pela via de um sistema claro e compreensível que o Estado ganhará a confiança de novos atores na sociedade e no mercado, ou seja, de contribuintes que paguem o que realmente é devido.
Por fim, é preciso lembrar que a luta pela aprovação de uma reforma tributária ampla, como é o caso da PEC 110/2019, tem sido um caminho árduo, que gera profícuos debates, mas também suscita inúmeras discordâncias entre os setores produtivos, sociedade e diversas esferas de governos.
Idealizar e aprovar uma reforma tributária é um tema que, inclusive, pode custar o capital eleitoral de parlamentares. O próprio idealizador da PEC 110/2019, o ex-deputado Luis Carlos Hauly, já comentou, em certa ocasião, que a formulação da proposta lhe causaria, muito provavelmente, a perca de votos e a consequente não renovação do seu mandato. Como sói acontecer, o ex-deputado não obteve votos suficientes nas eleições de 2018.
O ano eleitoral é um grande obstáculo para a aprovação da reforma, já que os parlamentares estão focados nas respectivas campanhas políticas e é possível que a maioria deles evite tratar e votar temas polêmicos e delicados em ano eleitoral.
Inúmeras são as dificuldades que atrasam a aprovação de uma proposta que promova alteração do nosso sistema tributário. Apesar de todos esses percalços, é preciso ter a consciência de que, enquanto não for aprovada uma reforma que resolva o "manicômio tributário brasileiro", o país continuará atrasado e na contramão dos países desenvolvidos. Para que o país avance e consiga superar seus constantes cenários adversos, é necessário que se adote um sistema permeado pela segurança jurídica, clareza e facilidade no manuseio das regras tributárias.
[1] Disponível em: https://www.taxcomplexity.org/. Acesso em: 15 mai 22.
[2] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/banco-mundial-empresas-gastam-ate-1501-horas-para-pagar-impostos-no-brasil/. Acesso em: 15 mai 22.
[3] Art. 239. A arrecadação decorrente das contribuições para o Programa de Integração Social, criado pela Lei Complementar nº 7, de 7 de setembro de 1970, e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, criado pela Lei Complementar nº 8, de 3 de dezembro de 1970, passa, a partir da promulgação desta Constituição, a financiar, nos termos que a lei dispuser, o programa do seguro-desemprego, outras ações da previdência social e o abono de que trata o § 3º deste artigo.
Fonte: ConJur