PEC da Reforma Administrativa: é o fim da estabilidade do serviço público?
Especialistas divergem sobre o texto de PEC que ainda será analisado no Congresso Nacional, mas são unânimes em afirmar que é vago e sem assertividade
Novas regras previstas na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 32/2020 poderão extinguir uma das principais características do funcionalismo público: a estabilidade de servidores da União, autarquias e fundações públicas federais, integrantes do Regime Jurídico Único, previsto na Lei nº 8.112/1990. Apenas militares e pessoas que ocupam carreiras típicas de Estado não serão afetados.
Se o texto original da PEC da Reforma Administrativa for aprovado pelo Congresso Nacional, os funcionários públicos poderão ser demitidos sem a necessidade de decisão judicial transitada em julgado e sem abertura de processo administrativo, únicas duas formas de demissão previstas na Constituição Federal de 1988. As novas definições, porém, valerão apenas para servidores que ocuparão cargos públicos após a promulgação da PEC.
Para especialistas, o texto, enviado à Câmara dos Deputados pelo governo federal em 3 de setembro de 2020, é vago e pode trazer instabilidades para o serviço público, além de não promover mudanças significativas para alcançar a celeridade da máquina pública e a economia, objetivos defendidos pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao anunciar a reforma.
![Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, a proposta cria um novo serviço público com "foco em servir" Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, a proposta cria um novo serviço público com "foco em servir"](https://midias.correiobraziliense.com.br/_midias/jpg/2021/03/28/675x450/1_3-6585956.jpg)
O texto enviado por Guedes está na Câmara dos Deputados. Ainda não há relator para a proposta e nem data de votação. De acordo com o ministro, a PEC busca criar um serviço público baseado em quatro princípios: “foco em servir; valorização das pessoas; agilidade e inovação; e eficiência e racionalidade: alcance de melhores resultados, em menos tempo e com menores custos”.
Texto incerto
O próprio fim da estabilidade não está bem definido na proposta. Para a professora de gestão de pessoas e fundamentos de liderança do Programa Avançado em Gestão Pública do Insper Cristina Mori, a falta de definições torna o texto superficial e até mesmo prejudicial, por não definir exatamente o que poderia gerar desligamentos.
“A peça é um pouco vaga nos aspectos que diz que gostaria de avançar. A demissão de servidores já é prevista na Constituição, ou seja, a estabilidade já é relativa e não é irrestrita, há condições para o desligamento”, diz.
Atualmente, a Lei nº 8.112/90 prevê as hipóteses de demissão para casos de crimes contra a administração pública, abandono de cargo, improbidade administrativa, conduta escandalosa, lesão aos cofres públicos, receber propina, entre outros.
“Ao ler a PEC, nos questionamos sobre como será feito o desligamento e por quais motivos, mas isso não é dito, o que gera uma insegurança interna e desmotiva o servidor, pois ele não saberá o seu futuro e o que poderá tirá-lo dali”, afirma.
Punir improdutividade?
!["O fato de não poder demitir alguém que não rende acaba tornando o custo orçamentário grande. Faria sentido ter o enxugamento de servidores que não fazem tarefas relevantes, mas é preciso ter uma visão mais ampla para discutir o planejamento da administração pública como um todo" Rodolfo Tamanaha, mestre em direito público "O fato de não poder demitir alguém que não rende acaba tornando o custo orçamentário grande. Faria sentido ter o enxugamento de servidores que não fazem tarefas relevantes, mas é preciso ter uma visão mais ampla para discutir o planejamento da administração pública como um todo" Rodolfo Tamanaha, mestre em direito público](https://midias.correiobraziliense.com.br/_midias/jpg/2021/03/28/675x450/1_2-6585945.jpg)
O mestre em direito público pela Universidade de Brasília (UnB) e professor do Ibmec Rodolfo Tamanaha afirma que a flexibilidade nas demissões é importante, mas precisa ser vista apenas como um ponto de um grande problema.
“O fato de não poder demitir alguém que não rende acaba tornando o custo orçamentário grande. Faria sentido ter o enxugamento de servidores que não fazem tarefas relevantes”, pontua.
“Mas é preciso ter uma visão mais ampla para discutir o planejamento da administração pública como um todo. Não podemos cair no erro de que teremos uma bala de prata para resolver o serviço público”, diz.
Pelo fim dos privilégios
No Congresso Nacional, uma reforma administrativa vinha sendo discutida antes do envio do texto para a Câmara dos Deputados. Em fevereiro de 2020, foi criada a Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa (FPMRA), com apoio de 231 congressistas. Nela, 17 deputados e senadores, junto a especialistas técnicos, discutiam mudanças significativas na administração pública.
![Tiago Mitraud (Novo-MG) preside a Frente Parlamentar da Reforma Administrativa no Congresso Nacional Tiago Mitraud (Novo-MG) preside a Frente Parlamentar da Reforma Administrativa no Congresso Nacional](https://midias.correiobraziliense.com.br/_midias/jpg/2021/03/28/675x450/1_13-6586064.jpg)
Com o envio da PEC 32/20, a Frente passou a estudar o texto do Executivo e pensar em melhorias. Presidente da Frente, Tiago Mitraud (Novo-MG) afirma que a PEC é necessária e o primeiro passo de diversas mudanças que precisam ser feitas para transformar o Estado.
O parlamentar afirma que a possibilidade de demissões é essencial para a modernização do serviço público. “A estabilidade não é um privilégio do servidor, é um instrumento de proteção dele, para evitar decisões de chefia que não tem uma boa intenção”, explica. “Mas, da forma que ocorre no Brasil, ampla e irrestrita, promove a manutenção de servidores que tiveram cargos obsoletos”, diz.
Tiago cita a existência de datilógrafos e operadores de vídeo cassete que ainda estão na administração pública, mesmo sem ter onde atuarem. Para evitar gastos com serviços não mais utilizados e também manter a estabilidade para quem precisa, Tiago propõe a definição de critérios em lei complementar.
“É preciso definir critérios para estabilidade, o que define a perda do cargo, o que fazer quando o cargo se tornar obsoleto ou não ter mais necessidade de muitos servidores porque a demanda diminuiu”, pontua. “Tratar a estabilidade como um manto sagrado é um erro, mas ela também não é a solução para tudo”, declara.
É por esse motivo que a Frente propõe três alterações no texto da PEC: a validade das novas regras para atuais servidores, e não somente para futuros concursados; inclusão de membros do poder, como juízes e procuradores, na retirada de benefícios e distorções; e a proibição de licença remunerada para disputa eleitoral.
Falta estratégia e clareza
!["É preciso ter uma regra clara, transparente, que seja equânime para a avaliação, se não você acaba criando mecanismos para demitir pessoas em massa" Cristina Mori, professora de gestão pública do Insper, o texto é vago "É preciso ter uma regra clara, transparente, que seja equânime para a avaliação, se não você acaba criando mecanismos para demitir pessoas em massa" Cristina Mori, professora de gestão pública do Insper, o texto é vago](https://midias.correiobraziliense.com.br/_midias/jpg/2021/03/28/675x450/1_4-6585976.jpg)
A impressão dos especialistas é de que a PEC busca garantir economia nos gastos com o serviço público, mas falha no objetivo de ser uma reforma administrativa. “Fica a sensação de que o texto foi proposto para um ajuste fiscal, acima de qualquer outro objetivo, pois a forma que trata o servidor, de maneira tão simples, não consegue solucionar problemas de verdade”, avalia Cristina.
A avaliação de desempenho, por exemplo, parece estar no texto apenas para definir quem será demitido ou quem continuará no cargo. Isso se dá porque a PEC não define quais serão os critérios avaliativos. “É preciso ter uma regra clara, transparente, que seja equânime para a avaliação, se não você acaba criando mecanismos para demitir pessoas em massa”, destaca Cristina.
“Gestores implementam avaliações de desempenho não para fins de desligamento, mas para aperfeiçoar, esse é o principal objetivo”, complementa a professora. É no que também acredita Rodolfo Tamanaha. Ele afirma que a avaliação pode colocar a responsabilidade integral do desempenho ruim no servidor, o que é um erro.
“Colocar parâmetros de avaliação para ver se a pessoa está rendendo o que se espera dela é algo muito bom. Mas não é só essa lógica de mercado, usada em certas empresas particulares, que resolve tudo”, pontua. “Tem que sofisticar o debate e entender que não é só exigir do servidor, há instabilidades do cargo e do próprio serviço público que precisam ser vistas e trabalhados”, afirma.
Uma canetada não resolve tudo
Em vez de tratar pontos isolados da lei, a solução para uma reforma administrativa e gestão de pessoas eficaz está em adotar uma visão estratégica que priorize as áreas que cuidam de servidores.
“Nossos problemas são por falta de visão de gestão, falta de clareza de direcionamento e resultados esperados, falta de conhecimento sobre como alocar bem as pessoas e sobre como selecionar lideranças que gerenciam bem equipes”, elenca Cristina.
“É preciso ter capacidade de olhar a organização, entender qual é o problema e gerir. Isso não se faz por lei, se faz por mudança estratégica de visão de gestão”, sugere a professora. “Os departamentos de RH dos órgãos públicos, por exemplo, são pequenos, estão em baixa escala de prioridade e estão apenas preocupados em mandar folhas de ponto”, diz.
Rodolfo afirma que é preciso entender que as mudanças a serem feitas devem sempre prezar pelo aprimoramento do que é ofertado à sociedade. “Nenhum país consegue prosperar sem um serviço público de qualidade. É preciso entender que a reforma é muito mais que a carreira”, declara.
A falta de uma gestão de pessoas de qualidade e a perda de direitos prevista na PEC impacta diretamente nos atuais e novos servidores e pode tornar o serviço público uma opção de trabalho menos visada. “Pessoas com vocação pública e que querem servir a sociedade podem ter medo de construir a carreira sem saber o futuro”, avalia Cristina.
“Isso vai gerar instabilidade e grandes talentos que estão ali migrarão para a iniciativa particular. Isso não pode ser compensado depois. Melhorias são necessárias, mas é preciso aprofundar o debate e não achar que é possível resolver tudo em uma canetada”, complementa.
Estabilidade para proteger
Além da falta de clareza no texto, a PEC é vista como uma ameaça para a independência do serviço público. O professor Giliad Souza explica que a estabilidade foi criada para garantir o exercício de serviços públicos que podem causar incômodo em empresas e até mesmo em governos.
“A estabilidade foi colocada para evitar a perseguição política de servidores públicos. Para o servidor do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) fazer a fiscalização deles sem amarras e para professores pesquisarem o que quiserem, por exemplo”, afirma Giliad.
“Esse mecanismo protege pessoas de trocas políticas que somente causam a descontinuidade do serviço público”, complementa Cristina. “A estabilidade, então, garante a permanência da atividade, independente do gestor”, opina Rodolfo.
Com o fim da estabilidade, é possível que alguns cargos importantes percam a garantia de continuar a promover o trabalho proposto por ele. “O trabalho de um auditor ou fiscal da Receita (Federal), por exemplo, incomoda, pois ele descobre os desvios ou outros erros de uma empresa e traz prejuízo. Então, é preciso garantir que ele tenha um cargo estável”, exemplifica Rodolfo.
Mas o professor também afirma que a estabilidade não é necessária para todos os cargos. “Nos últimos tempos, generalizou-se a estabilidade para todos os cargos. Existe uma proteção além da carreira e isso não é necessário. Hoje, muitos cargos não têm mais tanta utilidade ou o desempenho é fraco e não é possível mudar essa situação”, comenta.
Fonte: Correio Brazilienase