Opinião
Reforma administrativa: o equívoco da proibição da cassação de aposentadoria
O substitutivo apresentado pelo relator da reforma administrativa no último dia 23 traz mais uma contribuição para o notório processo de desmanche do sistema brasileiro de combate à corrupção e promoção da integridade pública.
Tal desfavor à sociedade brasileira consta da pretensa nova redação do artigo 40, §10-A, da Constituição Federal, segundo o qual fica vedada a aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria aos servidores públicos.
Trata-se de discussão desde há muito travada, e que já conta com posicionamento pacificado no âmbito dos tribunais superiores.
Nesse sentido, vale colacionar os precedentes constantes dos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no MS 13.074/DF, no RMS 32.624 AgrR, no AI n° 504.188 ED/RS, no MS n° 23.219 AgR/RS, no MS n° 23.299/SP, no MS n° 10.289/DF, no MS n° 19.572/DF, no RMS n° 15.047/BA e na ADPF n° 418/DF.
Não se pode considerar a aposentadoria um ato jurídico perfeito, imutável e absolutamente inquestionável: o cometimento de falta pelo servidor enquanto na ativa subtrai um dos requisitos fundamentais de sua concessão, qual seja, regular exercício da função pública por determinado período.
E nem se argumente que a natureza supostamente contributiva do regime previdenciário inviabilizaria a cassação: o princípio da solidariedade, orientador de toda a lógica do sistema, é determinante de uma visão global, não individualista da concessão de benefícios — somente fazendo jus a recebê-los os que não tenham se envolvido em atos potencialmente autorizadores da aplicação da penalidade.
O regime previdenciário dos servidores não apresenta natureza de capitalização: a referida solidariedade e universalidade determina a socialização de riscos, de modo que o que necessitar de assistência contará com suporte advindo das contribuições de todos os demais servidores.
Tanto assim que a contribuição é obrigatória, não sendo dado a qualquer servidor negar-se a contribuir, ao argumento de que preferiria abrir mão da respectiva aposentadoria.
As normas regentes do regime estatutário são autônomas para disciplinar as penalidades a que estão sujeitos os servidores — as quais não se confundem, em absoluto, com seus eventuais reflexos previdenciários.
E o exercício da atividade disciplinar traduz poder-dever da Administração de fazer cumprir tal regime estatutário — do qual toma plena ciência o servidor quando da sua investidura no cargo, devendo, portanto, observá-lo integral e fielmente.
A abrupta, infundada e contrária ao interesse público mudança de rumos quanto à admissibilidade da cassação vem desprovida de qualquer razoabilidade e coloca-se francamente dissonante das tendências mundiais de política pública anticorrupção.
A vedação à perda da aposentadoria funciona como incentivo à prática de ilícitos e compromete absolutamente o equilíbrio da análise custo-benefício levada a efeito pelo agente corrupto/ímprobo ao decidir agir em desconformidade com a lei.
Realmente, e conforme estabelece a doutrina risco-recompensa voltada à elucidação dos motivos pelos quais as pessoas se envolvem na prática de atos ilegais, uma vez ausente o risco de punição, o estímulo à prática de desvios torna-se marcadamente eloquente.
Tome-se, por exemplo, os servidores próximos da aposentadoria, que não raramente permanecem exercendo suas funções junto à Administração mediante cargo em comissão após a investidura nessa nova situação jurídica.
A proibição de cassação de aposentadoria os coloca em posição acima do bem e do mal, posto que a prática de qualquer infração disciplinar restaria praticamente não sujeita a sanção alguma.
O cometimento do ilícito funcional — potencialmente caracterizador, também, de infrações criminais ou de natureza político-administrativa — não desencadeará, em cenários tais, absolutamente nenhuma medida efetiva pela Administração: ultrapassada a "linha de chegada" da aposentadoria, ainda que se aperfeiçoe uma eventual exoneração, a mesma não impedirá futura renomeação, ficando o agente faltoso como que com um "salvo-conduto" para a perpetração de ilícitos.
Não se questiona que o fato ensejador da potencial cassação deva necessariamente ter sido cometido enquanto ainda em exercício o servidor (e independentemente de haver preenchido os requisitos para se aposentar). A sua vedação absoluta, porém, é evidentemente contrária ao interesse público e toda a lógica repressiva e preventiva de perpetração de ilegalidades.
Com a alteração, perde toda a sociedade brasileira; sofre o já tão castigado sistema de combate à corrupção e, infelizmente, fica cada vez mais distante qualquer pretensão séria de promoção da integridade pública brasileira.
Laura Mendes Amando de Barros é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP, especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris, ex- controladora-geral do município de São Paulo e professora do Insper.
Fonte: ConJur