Reforma Administrativa: os problemas reais e os espantalhos (por Róber Iturriet Avila)
O dogmatismo ideológico permeia o debate sobre a Reforma Administrativa. De um lado, os liberais partem da hipótese de que os servidores públicos são ineficientes, caros, corruptos e privilegiados, colocando-se em oposição a esses desde a partida. De outro, grande parte da esquerda enquadra qualquer alteração como desmonte e recusa-se a enxergar que existem problemas sérios no serviço público que precisam de correção.
As opiniões emitidas estão mais baseadas em preconceitos do que em informações factuais. Dados objetivos e transparência podem ajudar a clarear os pontos e contrapontos nesse debate.
O espantalho mor é o ser genérico marajá de Brasília, que trabalha em algum ministério. Os servidores federais representam 10,4% do total e estão, em grande medida, na polícia, no judiciário, nas universidades e nos quarteis. Já 56,6% são municipários, atuam majoritariamente nas escolas e em unidades de saúde, e possuem salário médio de R$ 3.000,00.
Os exorbitantes salários dos magistrados são espantalhos potentes. No judiciário, os rendimentos médios são de R$ 12.000,00, mas chegam a valores inaceitáveis, em alguns casos. Os 3,2% de todos os servidores servem como cortina de fumaça e são tomados como ícones do patrimonialismo. Na realidade concreta, 94,4% dos servidores estão no executivo e possuem uma média salarial inferior a R$ 4.000,00.
Extintas em 2003, a integralidade e a paridade das aposentadorias são apontadas como privilégios dos servidores. Correção realizada há quase duas décadas, que persiste como um surrado argumento retórico.
De toda forma, os defensores da meritocracia não consideram que 49% do funcionalismo possui nível superior, enquanto no setor privado não chegam a 15%. Possuem mestrado ou doutorado 9,7% dos servidores federais e 2,7% quando consideramos todos os níveis, enquanto na população geral essa representação não chega a 1%.
Pelo outro lado, no campo da esquerda, qualquer proposta de mudança é tida como ataque neoliberal ao serviço público. Há uma negação dos conhecidos problemas existentes no Estado. Na União e no estado do Rio Grande do Sul já não existem mais aumentos salariais periódicos dissociados com o desempenho, uniformizar isso para todo o país é um avanço. O prêmio por não faltar ao trabalho, a licença-prêmio, também já não vigora na União e nem no estado do Rio Grande do Sul e deve mesmo acabar em qualquer local.
É de conhecimento público que certo tenente do exército foi condenado por terrorismo e como “punição” foi promovido a capitão e aposentou-se aos 33 anos, com salário integral e paritário. Uma excrescência! Está claro que algumas mudanças são necessárias.
No tocante a PEC 32/2020, dois pontos são particularmente polêmicos: a estratificação de servidores em diferentes vínculos e o fim da estabilidade para grande parte dos servidores públicos.
Um dos problemas reais do serviço público, implícito no texto acima, é a disparidade salarial de algumas carreiras e, também, a manutenção de privilégios previdenciários para os militares. A PEC 32 propõe que haja estabilidade apenas para os cargos típicos de Estado: juízes, procuradores, policiais e militares. Essa proposição consolidaria um estamento burocrático de elite. Os demais servidores seriam temporários ou sem estabilidade, podendo ser demitidos a qualquer tempo, sem motivações específicas. Quando tratamos dos “demais”, é preciso ter em mente que são professores, médicos, enfermeiros, majoritariamente.
Além disso, haveria a criação de uma categoria de “liderança e assessoramento”. Ou seja, cargos de confiança do governante de plantão ingressariam em massa no serviço público.
O Chefe do Executivo poderia também extinguir fundações e autarquias sumariamente, sem uma discussão com o parlamento. São autarquias, por exemplo, as Universidades Federais.
O espantalho para essas propostas radicais e temerárias são os maus servidores e o problema real de eficiência no serviço público.
Atualmente, há possibilidade de demissão de servidores estáveis com um processo administrativo ou por decisão judicial. Entretanto, tais medidas são demoradas, custosas, difíceis e passíveis de reversão judicial. Há previsão de demissão de servidores por insuficiência de desempenho, mas essa legislação não foi regulamentada.
As esquerdas erram e não encampar a agenda de melhoria e modernização da burocracia estatal. Agilidade, transparência, produtividade, profissionalismo, seriedade e comprometimento devem ser pautas permanentes no serviço público. Se é preciso premiar o funcionário qualificado e competente, de outro lado, a punição e mesmo o desligamento de servidores descomprometidos e com baixo desempenho auxiliariam na defesa de serviços de qualidade.
A recusa das esquerdas em encarar os problemas concretos existentes no setor público abrem flancos para que os espantalhos utilizados no debate comum viabilizem uma Reforma que prevê a demissão sumária e despropositada de servidores e extinção de instituições a qualquer tempo.
Se a PEC 32 corrige alguns excessos ainda vigentes, ela também traz mudanças profundas que são potencialmente maléficas. Contudo, alterações que aumentem a produtividade, a digitalização, a transparência, o controle social e que punam maus servidores são necessárias. Sob qualquer ponto de vista, é preciso deixar de lado o dogmatismo e enxergar a realidade como ela é.
Referências:
AVILA. Róber iturriet. Despesa Pública III: Indicadores da despesa e da estrutura do Estado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_5Mt624K0oo
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas do Estado Brasileiro. Disponível em: www.ipea.gov.br/atlasestado
OREIRO J. L. E FERREIRA FILHO, H. L. A PEC 32 da Reforma Administrativa: Reformar o Serviço Público para Acabar com o Estado do Bem-Estar Social e Implantar o Estado Neo-Liberal., 2021;
(*) Professor de Economia da UFRGS, diretor do Instituto Justiça Fiscal. Youtube.com/roberiturriet.
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Fonte: Sul 21