Reforma da Lei de Improbidade Administrativa e retroatividade




22/10/2021 - 07:36

Improbidade em Debate

Reforma da Lei de Improbidade Administrativa e retroatividade

Por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega

Como apontamos recentemente, quando da votação do Projeto de Lei nº 2.505/2021 no Senado Federal, proposta de emenda fez surgir, ainda na Comissão de Constituição e Justiça, discussão sobre a retroatividade das mudanças que estavam sendo operadas na Lei de Improbidade.

Sob intensos debates, a iniciativa naufragou na própria comissão, nem sequer chegando a Plenário. De toda sorte, a "supressão" [1] deixou alguns questionamentos sobre se teria a previsão proposta sido, em primeiro lugar, necessária e, ainda, se seu abandono inviabilizaria a retroatividade das mudanças naquilo que favorecessem réus em ações de improbidade.

Antecipamos nossa resposta no sentido de que normas benignas, em geral, retroagem para beneficiar aquele que seja alvo de pretensão sancionadora em sede de improbidade administrativa, havendo, contudo, ressalvas a se considerar.

Buscando fundamentar e esclarecer a conclusão acima, imperioso que retomemos, em primeiro lugar, o conceito de Direito (Administrativo) sancionador, gênero de que seria espécie o instituto da improbidade administrativa. Fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, aquele ramo congregaria distintos segmentos pelos quais operaria o poder punitivo do Estado (de contas, regulatório, ambiental, administrativo, concorrencial etc.), identificando elementos comuns dignos de alçá-los a objeto próprio de estudo.

Inobstante algumas visões divisem nesse regime jurídico algo mais amplo — chegando até a inserir no âmbito do Direito sancionador o próprio Direito Penal como parte daquela unidade dogmática [2] —, entre nós, no Brasil, nuanças distintivas entre a matriz punitiva criminal e aquela de cariz administrativo ainda têm dificultado maior povoamento dos pontos convergentes, vindo daí a alcunha que tem prevalecido: Direito Administrativo sancionador, estremando-o do penal.

Ainda que concebamos como prevalecente referida posição dicotômica, temos que da insuficiência de aspectos comuns a justificar a inserção do Direito Criminal no eixo do Direito sancionador não deflui, em absoluto, a conclusão de que inexistam entre eles quaisquer aspectos comuns — aliás, não somente os há, como não são poucos.

Dito de outro modo, mesmo que não se identifique o Direito Criminal com o Direito sancionador, à falta de identidade bastante à sobreposição, não há falar em que não haja entre eles pontos de contato. Firmes nessa premissa, e no que releva para este texto, o ponto de contato que nos compete identificar reside no artigo 5º, XL, da Constituição, a versar sobre a retroatividade da lei penal benéfica ao réu.

À partida, a referência a "penal", aliada ao fato de no modelo brasileiro não haver tranquilidade em que aquele ramo estivesse contemplado pelo direito sancionador, inspiraria algum incômodo, que, porém, não resistiria a um olhar mais amplo. Isso porque vem à lembrança, de pronto, que o artigo 9º do Pacto de San José da Costa Rica, ao replicar o princípio da retroatividade da lei benigna, não o cingiu à norma penal, de modo que, sabido ostentar a referida convenção status supralegal, sua dicção, sozinha, já haveria de se sobrepor à legislação infraconstitucional, particularmente no que concerne à interpretação sobre a extensão dos efeitos de alterações positivas.

A par da citada convenção, uma perspectiva comparada igualmente favoreceria a tese de que o princípio inserto no artigo 5º, XL, na medida em que veicula direito fundamento, mereceria aplicação ampla, alcançando a seara sancionadora, como bem ilustram normas presentes nos Direitos alemão [3], português [4] e espanhol [5].

Mesmo que se ignorassem aqueles elementos, amostras contundentes de aplicação do citado princípio nos diversos segmentos do Direito Administrativo sancionador militam em favor de sua assimilação por esse ramo como um todo. A esse respeito, vale mencionar: 1) o artigo 106 do Código Tributário Nacional e o Parecer nº 11.315/2020/ME PGFN, na seara tributária; 2) o Processo Administrativo Sancionador nº 12/03, junto à Comissão de Valores Mobiliários; 3) o Parecer 0427/2012/PHE-ANEEL-PGF/AGU, junto à Agência Nacional de Energia Elétrica; 4) o acórdão no Processo Administrativo 08012.001183/2009-08, junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica; e 5) o Acórdão nº 1.036/2019, proferido pelo Tribunal de Contas da União.

Mais além, àqueles exemplos concretos há de se somar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a reiterar a incidência do aludido princípio na seara administrativo sancionadora, consoante já decidido pela 2ª Turma daquela corte, no sentido de que o "processo administrativo disciplinar é uma espécie de direito sancionador. Por essa razão, (...) o princípio da retroatividade mais benéfica deve ser aplicado também no âmbito dos processos administrativos disciplinares" (AgInt no MS 64.486).

A 1ª Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça, de igual modo, também já assentou que "o tema insere-se no âmbito do Direito Administrativo sancionador e, segundo doutrina e jurisprudência, em razão de sua proximidade com o Direito Penal, a ele se estende a norma do artigo 5º, XVIII, da Constituição da República, qual seja, a retroatividade da lei mais benéfica" (REsp 1.353.267; e, em idêntico sentido, o RMS 37.031).

Todos esses exemplos, somados, evidenciam que, conquanto não se possa estabelecer uma sobreposição total entre o Direito Penal e o Direito Administrativo sancionador de modo a que se possa deles extrair um regime comum, é fato que, ao menos no que toca ao princípio da retroatividade da lei benigna, há claro diálogo entre os dois campos.

Diga-se ainda, em reforço, que, se a incidência do citado princípio, como visto acima, restou comprovada em dimensões do Direito sancionador bem menos gravosas que a improbidade, como muito maior razão seria de se presumir que nela a retroatividade encontre campo.

Em outras palavras, se em processo disciplinar, em multas tributárias ou em cominações de sanções junto à CVM e ao Cade foi possível pinçar exemplos em que mereceu prestígio a retroatividade da lei benéfica, soa lógico que em improbidade, bem mais próxima do Direito Penal — lembre-se que o artigo 15, III e V, da Constituição admite a suspensão de direitos políticos em condenação criminal transitada em julgado e em improbidade administrativa —, faça ainda mais sentido a incorporação do referido princípio.

Não desconhecemos o fato de que com os exemplos acima convivem posições ainda resistentes à retroatividade da lei benéfica na seara sancionadora [6]. Pelas razões acima, todavia, cremos serem elas insustentáveis, nos permitindo, ainda, tecer afirmações adicionais.

Dado que a punição pelo Estado retira parcela considerável de sua legitimidade da reprovabilidade de dada conduta, sentido não há em que, sobrevindo mudanças atenuadoras ou condicionantes da mencionada reprovabilidade, se conserve grau de censura descompassado com o momento da entrega da sanção.

A bem da isonomia e da preservação de uma finalidade pedagógica da pena, descabe atrelar o juízo moral e o desvalor social a calibrar a punição com o momento de sua prática, sobretudo quando presente que a mensagem social advinda da recriminação somente se dará com a prolação da decisão.

Se a irretroatividade da lei gravosa protege o indivíduo contra uma sanha persecutória que pretenda, por via legiferante abusiva, destilar de modo direcionado intuito punitivo ao arrepio da segurança jurídica, a retroatividade da lei benigna retira seu fundamento do fato de que o que orienta a sanção não há de ser a satisfação de um desejo repressor, senão a correspondente proporcionalidade que a conduta deva merecer segundo a exata, e atualizada, menor medida de sua reprovação. Sobre esse último aspecto, aliás, lapidar mais outro julgado da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, digno de nota: "A retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. (...) se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator. Constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage" (RESP 1.153.083).

Já a caminho de nossa conclusão, devemos esclarecer, na resposta que antecipamos, as ressalvas que condicionam a retroatividade da lei benigna em matéria de improbidade. E principiamos por dizer que nos identificamos apenas parcialmente com a tese [7] de que: 1) se o legislador sancionador previr retroatividade na norma mais benéfica, ela retroagirá; 2) se previr expressamente que não deve ela retroagir, inobstante benéfica, ela não retroagirá; e 3) se silenciar, há de se considerar a retroatividade.

Concordamos que a previsão expressa de retroatividade é conveniente, ainda que desnecessária. Concordamos também que, no silêncio da lei — o que se aplica à reforma em análise —, a retroatividade opera. Discordamos, contudo, de que seria lícito ao legislador impedir a retroatividade de norma benéfica, sendo para nós simples o raciocínio de que essa ressalva, fruto de lei infraconstitucional, não poderia se sobrepor ao artigo 5º, XL, da Constituição, nascendo com a pecha da inconstitucionalidade.

Sem prejuízo desse modelo proposto, nosso recorte é distinto: admitimos a retroatividade, expressa ou não, com tranquilidade na abolição de tipos (o que inclui aspectos relacionados a elementos subjetivos, como a eliminação da modalidade culposa) e nos critérios de dosimetria da pena. Vemos com dificuldade, porém, alguns pontos relacionados a temas processuais e, particularmente, meritórios relacionados à prescrição, temas esses que exploraremos num texto futuro.

  [1] Não se suprime o que nunca foi inserido, de modo que referimos por supressão o abandono da proposta de mudança.

[2] CUTANDA, Blanca Lozano. La tensión entre eficácia y garantias em la represión administrativa: aplicación de los princípios constitucionales del orden penal em el derecho administrativo sancionador com especial referencia al princípio de legalidade. In: Cuadernos de derecho judicial. N. 11, 1997, págs. 41-78.

[3] Naquele que é o marco regulatório do Direito das Contra-ordenações (Gesetz über Ordnungswidrigkeiten), há previsão expressa de que "se a lei vigente ao tempo da conclusão da conduta for alterada antes da decisão, deverá ser aplicada a lei mais favorável".

[4] Decreto-Lei 433/82, do qual se extrai que "se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada".

[5] Da Ley 40/2015 constando que "las disposiciones sancionadoras producirán efecto retroactivo en cuanto favorezcan al presunto infractor o al infractor, tanto en lo referido a la tipificación de la infracción como a la sanción y a sus plazos de prescripción, incluso respecto de las sanciones pendientes de cumplimiento al entrar en vigor la nueva disposición".

[6] MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 155.

[7] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 2ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 337-338.

  Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch é doutor em Direito pela USP, professor de Direito Público, sócio-fundador do escritório Mudrovitsch Advogados. Integrou a Comissão de Juristas instituída para elaboração de anteprojeto da nova Lei de Improbidade Administrativa. Guilherme Pupe da Nóbrega é doutorando em Direito pelo IDP, professor de Direito Processual Civil, sócio do escritório Mudrovitsch Advogados. Fonte: ConJur

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