A aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto de lei (PLP 68/2024) de regulamentação da reforma tributária, promulgada pelo Congresso Nacional no ano passado, ocorreu com a neutralidade da carga de impostos sobre consumo ameaçada. A neutralidade garantia que a carga tributária não subiria em relação ao que é pago atualmente, quando da compra de um produto ou serviço pelo consumidor final. Mas foi alterado pelos deputados após cederem ao lobby de diversos setores econômicos dispostos a desfigurar o conceito tributário do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que no Brasil será constituído a partir da criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), cuja arrecadação será federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que será dividido entre estados e municípios.
Mudanças de última hora elevaram a projeção da alíquota de 26,5% para cerca de 27,3%, descumprindo uma trava colocada pelo Senado quando da tramitação da proposta de emenda constitucional que originou a reforma, a PEC 132. A trava teve a finalidade de evitar ultrapassar a alíquota original definida em acordo com o Ministério da Fazenda. Os deputados flexibilizaram a trava ao definir que, futuramente, o governo de plantão, a partir da transição prevista para começar entre 2027 e 2033, deverá revisar benefícios fiscais para convergir o percentual para a meta original.
Este trecho tende a ser alterado durante a tramitação no Senado, como sinalizou o relator, senador Eduardo Braga (MDB-AM), em pronunciamento no plenário do Senado, no dia seguinte à aprovação do projeto na Câmara. “Quando da tramitação da emenda constitucional, buscamos garantir a neutralidade tributária. Ou seja, que o povo brasileiro com a nova reforma tributária não tenha aumento de carga tributária. Acho que esse foi um dos maiores legados que o Senado da República estabeleceu quando da aprovação da emenda”, disse.
Os deputados concederam uma série de benesses de última hora para setores, principalmente para o agronegócio. A poderosa bancada ruralista com 319 deputados obteve a inclusão de 18 pedidos no texto final do PL 68. A principal foi a entrada da proteína animal na cesta básica isenta da CBS e do IBS. Os impacto das proteínas sobre alíquota dos impostos é de 0,53 ponto percentual, conforme estimativa do Banco Mundial,
Lobby sobre a reforma tributária irritou Lira
O lobby de segmentos como da produção de queijos e locação de veículos também pesou para mudanças no texto final da Câmara. Os queijeiros conseguiram isentar toda a produção do país, ampliando numa proporção ainda não estimada a alíquota da CBS e do IBS. Já as locadoras de veículos obtiveram êxito no pedido para antecipar créditos tributários durante o período de transição entre os sistema tributário atual e aquele que será adotado a partir de 2033.
A construção civil conseguiu elevar de 20% para 40% a margem de desconto na alíquota dos impostos para novos empreendimentos imobiliários. Digamos que o Senado devolva a alíquota para 26,5%. Neste caso, o setor pagará 10,6% de carga tributária.
Uma das mudanças mais controversas foi a inclusão dos carros elétricos no Imposto Seletivo, ou ‘imposto do pecado’, que prevê uma alíquota mais alta de produtos com impacto ambiental ou que fazem mal à saúde – como cigarros, bebidas e automóveis tradicionais. Os deputados avaliaram que o veículo elétrico não emite gás carbônico (CO²), causador do aquecimento global, mas usa minerais na sua produção. O mesmo rigor não foi aplicado para caminhões movidos a diesel, que foram excluídos do ‘imposto do pecado’, apesar do impacto expressivo na emissão de CO². O argumento foi que taxar caminhões com o imposto de exceção poderia encarecer o frete rodoviário.
Essas mudanças feriram a neutralidade tributária e, para além do jargão técnico, ocorreram de forma sorrateira no grupo de trabalho criado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, para acelerar a tramitação do PLP 68 sem passar pelo crivo de pelo menos três comissões permanentes. O grupo formado por sete deputados relatou o tema em cerca de 50 dias, o que é pouco tempo em relação ao rito natural da Câmara.
O resultado foi o assédio agressivo do lobby empresarial para desfigurar a reforma. O grupo realizou 22 audiências públicas para “inglês ver”, de acordo com um dos integrantes ouvidos pelo JOTA sob anonimato. Em paralelo, cerca de 900 reuniões foram realizadas a portas fechadas com lobistas sem divulgação dos participantes. Sem contar inúmeras conversas ao pé do ouvido entre deputados e agentes empresariais no corredor superior do Anexo II da Câmara, em frente às salas 171 e 172, onde reuniões ocorriam.
Apesar do assédio, os deputados deixaram muitas demandas empresariais de fora. Isso explica o número expressivo de 805 emendas apresentadas em plenário durante a votação do projeto. Embora assinadas por parlamentares de diversos partidos, as emendas foram um ‘copia e cola’ de demandas setoriais.
No dia da votação do projeto na Câmara, em 10 de julho, o presidente Lira se queixou a interlocutores da atuação agressiva de lobistas. A reclamação não surtiu efeito: o salão verde em frente à entrada do Plenário Ulysses Guimarães foi tomado por homens de terno e mulheres de tailleur defendendo interesses variados. Do lado de dentro do plenário, o assédio continuou.
Próximos passos da regulamentação da reforma tributária
O senador Eduardo Braga reuniu-se com a consultoria técnica da Casa, na semana passada e encomendou uma análise detalhada das mudanças implementadas pela Câmara em relação ao texto da PEC 132. Depois disso, ele pretende apresentar um calendário de trabalho até a primeira quinzena de agosto, conforme apurou o JOTA.
Nos próximos passos, o projeto será discutido na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado antes de ir ao plenário para votação dos 81 senadores. Braga não quer acelerar o processo. Ele pediu ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para que o projeto não tramite com urgência constitucional. O objetivo será debater o tema em audiências públicas.
Importante lembrar que setores não contemplados pelo texto aprovado da Câmara, devem tentar influenciar a redação final da PEC no Senado para garantir seus interesses ou um tratamento diferenciado.
O senador tem evitado falar sobre eventuais mudanças que pode implementar. Mas disse a interlocutores que a tendência é de cortar benesses tributárias concedidas pela Câmara para convergir a alíquota da CBS e do IBS para a meta de 26,5%. Contudo, as mudanças precisam ser negociadas com Lira, pois as alterações precisarão passar novamente pela aprovação dos deputados.
Braga, porém, pode ter em Lira um aliado. O presidente da Câmara é contra colocar carnes bovinas, de frango e suína na cesta básica desonerada. Lira não deseja para si a marca de ter apoiado a criação do IVA mais elevado do mundo, superando o da Hungria (27,1%).